POR ONDE COMEÇAR A ESTUDAR A PRÉ-HISTÓRIA?
- Ribas Carneiro
- 4 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de abr.
Pré-história, de Chris Gosden, é um material introdutório, bem abrangente e por isso mesmo indicado para iniciantes.
Ao começamos a estudar um assunto novo, um primeiro passo é encontrar uma obra que apresente um panorama geral. Nesse sentido, Pré-história, de Chris Gosden, é para quem quer iniciar os estudos sobre pré-história.
ANÁLISE
Como o título já indica, esse livro tem um foco bem amplo. Por isso, peca em alguns momentos pela superficialidade, mesmo assim é uma boa introdução aos estudos da pré-história.
Chris Gosden defende a ideia de que o ser-humano desenvolve cultura a partir de sua relação com os materiais ao seu alcance. Tais materiais se tornam ferramentas e ganham conteúdo simbólico.
O ponto de vista é interessante, pois, além de linguagem, o ser-humano teria uma certa cinestesia que lhe permite uma percepção múltipla dos materiais.
Ao final, porém, o autor, de maneira um tanto superficial, deixa-se contaminar pela onda atual de estudos de gênero.
O ponto alto por sua vez, fica por conta da apresentação de como se construiu o conceito de pré-história. Mas outras questões são muito bem trabalhadas, as relativas à arqueologia, à etnologia e à reconstrução histórica.
Trata-se de leitura proveitosa para aqueles que têm interesse numa visão panorâmica da pré-história.
A seguir, alguns conceitos que se destacam nessa obra.

Foto: capa de Pré-história, de Chris Gosden. Biblicanto.
A HISTÓRIA DO CONCEITO DE PRÉ-HISTÓRIA
Um dos pontos altos dessa obra é, sem dúvida, a abordagem do autor em relação à construção do conceito de pré-história.
Para Gosden: “A determinação de uma pré-história de longa duração é uma das grandes conquistas daquele século [XIX].” (p. 31)
De fato, a compreensão da evolução genética dos hominídeos e a ampliação da datação histórica é um dos maiores feitos de todos os tempos.
No Ocidente, com a descoberta da América, no século XVI, criou-se a necessidade de determinar de onde tinham vindo aqueles povos que jamais tinham sido mencionados na Bíblia.
O problema se desenvolveu de forma lenta, tornando-se cada vez mais central com a emergência dos estados e das discussões sobre ancestralidade e nacionalidade.
No século XVII, o bispo Ussher estimou que a terra surgiu em 4004 a.C. Ele chegou a essa data tão precisa se baseando na Bíblia. A explicação para a origens dos povos continuou sendo de ordem genealógica.
Em 1859, finalmente, Charles Darwin publicou A origem das espécies. Iniciava-se ali uma disputa entre o empirismo científico e a fé, algo que se estabilizou posteriormente com vantagem para a ciência.
Apenas um ano antes, em 1858, ocorreu a escavação da caverna de Brixham, na Inglaterra. Na ocasião artefatos produzidos pelo homem foram encontrados junto a vestígios de animais há muito extintos, particularmente mamutes e rinocerontes-lanudos.
A partir daquelas descobertas, Sir Charles Lyell assumiu a possibilidade de que a pré-história fosse imensamente longa. Assim, o mais influente arqueólogo britânico da época afirmou publicamente que deixava de lado seu ceticismo anterior em relação à “idade do homem”.
QUAL A IMPORTÂNCA DA PRÉ-HISTÓRIA?
A pré-história é o imenso período de existência humana sem uso de escrita. Logo, o termo também compreende o desenvolvimento de ancestrais hominídeos, como os australopitecus, Homo habilis e Homo erectus.
Gosden, no entanto, tem seu foco voltado para a nossa espécie: Homo sapiens sapiens. Há cerca de 120 mil anos, munida de pedras lascadas, ossos e pedaços de pau, a humanidade sobreviveu e começou a se desenvolver.
Por conta de suas limitações e fragilidades, nossos ancestrais tiveram de apostar na cooperação social e na exploração do ambiente:
“Nossa condição humana reside na cooperação social e em uma flexibilidade de reação física e mental ao mundo, e as origens de todas essas habilidades nos fascinam.” (p.16)
Eis a importância da pré-história: ficamos fascinados com as capacidades desses nossos ancestrais. Mas mais importante ainda, muitas questões hoje criadas por tecnologias como a internet e a inteligência artificial ganham novas explicações com a ajuda de um olhar para esse passado remoto.
COMO ESTUDAR E RECONSTRUIR A PRÉ-HISTÓRIA?
Estudar a pré-história é algo bem diverso do estudo histórico que conta com a escrita como uma de suas fontes. As fontes arqueológicas são muito lacunares, e essas lacunas precisam ser preenchidas com informações adicionais.
Isso traz o risco de surgir muita “literatura” no trabalho do historiador. Gosden, destaca que é preciso impor limites à imaginação e buscar sempre dados mais objetivos.
Outro ponto central para o estudo da pré-história é não tentar entendê-la apenas a partir dos conceitos de nossa atualidade. Na verdade, as teorias usuais para estudo da história não são apropriadas para o estudo da pré-história.
Afinal, não é possível, por exemplo, estudar a pré-história utilizando conceitos de economia ou de classe social, cuja definição é dificílima. Isso porque as estruturas socioeconômicas dos povos pré-históricos eram totalmente diferentes das que conhecemos hoje.
De acordo com Gosden, mais apropriado seria ver do ponto de vista das relações sinestésicas com os materiais, inclusive a produção de ferramentas.
QUANDO TERMINA A PRÉ-HISTÓRIA?
A pré-história termina quando surge a escrita. Porém, a escrita não surge ao mesmo tempo para todos, nem é repentina e sequer é algo inicialmente definitivo.
Gosden relata, por exemplo, que, na ilha de Creta, a Civilização Minoica desenvolveu uma escrita pictográfica entre 1600 a.C. e 1200 a.C. No entanto, essa escrita foi abandonada e desapareceu. Apenas muito mais tarde ressurgiu a escrita na ilha com a adoção do alfabeto grego.
O fim da pré-história não se dá de maneira linear, ela acontece devido a vários fatores em meio a várias idas e vindas.
Há casos mais dramáticos, é claro. Certa vez, os nativos da Nova Guiné viram um avião e poucos dias depois receberam a visita de exploradores europeus, eles viram ali o fim de sua pré-história, que foi inclusive filmada.
No Brasil, a pré-história terminou com a chegada dos europeus. No México, porém, não se pode dizer o mesmo, pois já havia uma escrita que se perdeu com a chegada dos europeus.
Na Bretanha a pré-história termina com as conquistas romanas sob o comando de Júlio César.
Muitas vezes, influenciados por nosso universo logocêntrico, podemos imaginar que os indivíduos da pré-história não tinham cronologias ou cultura. O fato, porém, é que os povos ágrafos tinham cultura e até formas de história e cronologia, diferentes da nossa, é claro, mas eram sistemas que funcionavam.
GENÉTICA E CULTURA
Chris Gosden demonstra que nossa herança genética não explica, por si só, a existência de cultura. Esta seria resultado de uma relação intrínseca e muito especial entre os humanos e as coisas materiais.
Apesar de suas habilidades, nossa espécie passou muito tempo sem fazer coisas “de humanos”. Há apenas uns 60 mil anos, no período paleolítico Médio e Superior, ocorreu uma mudança significativa. Aos poucos nossos ancestrais se desprenderam dos imediatismos da vida, assim, o tempo e o espaço se alargaram.
De acordo com Gosden, uma combinação especial de habilidades corporais com o mundo material e a dimensão da linguagem tomou a forma moderna pela primeira vez há cerca de 40 mil anos. Central nesse processo é a cultura material que os humanos desenvolveram.
A partir de então, todo ser humano plenamente moderno apresentou a capacidade de cultura. Eventualmente, alguns não exercitaram ou aprenderam certos elementos culturais, mas todos os humanos têm relação com coisas, plantas, animais e objetos. Isso se desenvolveu ao longo de milênios.
As formas culturais que se desenvolveram ao longo dessas dezenas de milhares de anos são extremamente variadas. A variedade é tamanha que não seria legítimo analisá-las a partir de um único eixo, como civilizadas ou não.
Gosden assume, assim, um conceito central para a antropologia: a rigor, as culturas não seriam mais ou menos complexas ou ainda piores ou melhores, apenas diferentes. As comparações interculturais seriam legítimas apenas para revelar contrastes e não para medir todas as culturas por um só parâmetro.
CRÍTICA À OBRA
Pré-história, de Chris Gosden, é um livro muito rico em informações para neófitos no assunto. O autor é um arqueólogo e historiador experiente e é preciso reconhecer que conseguiu fazer uma obra muito útil. No entanto, alguns de seus posicionamentos enfraquecem sua abordagem.
Passível de crítica, por exemplo, é como Gosden identifica o ocidental como um ser voltado para atitudes egoístas. Ele se concentra principalmente nas atitudes culturais do Ocidente nos últimos dois séculos.
O problema dessa concepção, hoje muito comum em meios acadêmicos, é que ela deixa de lado, por exemplo, o sentido cristão de amor ao próximo. Ora, o pensamento cristão está no cerne da cultura ocidental. Isso é tão verdadeiro que o próprio julgamento que se faz ao individualismo é baseado em conceitos de fraternidade de origem cristã.
Outro ponto que merece menção é a defesa de Gosden em relação à tese de que a construção de gênero é puramente cultural. Para tanto ele apresenta dois exemplos.
O primeiro são os deuses de um terceiro sexo entre grupos indígenas norte-americanos e entre os hijras, da Índia. O outro exemplo são as figuras de duas cabeças e órgãos sexuais femininos e masculinos encontrados num sítio arqueológico que remete à civilização micênica.
Os exemplos não são convincentes, além de muito delimitados, eles fazem referência a elementos divinos. Não se trata, obviamente, de representação do universo natural realista.
Em contraposição, existem muitos milhares, senão milhões, de outros artefatos encontrados ao redor do mundo que reforçam, tanto nas representações de humanos quanto de animais, a diferença entre macho e fêmea.
Parece óbvio concluir que, para as sociedades humanas, desde o paleolítico até o neolítico e a Era do Bronze, a diferença entre macho e fêmea na natureza é algo muito objetivo e puramente observável.
CONCLUSÃO
A Pré-história, de Chris Gosden, não se limita aos aspectos apontados aqui. É uma obra bem abrangente, enciclopédica, bem organizada.
Como em relação a qualquer outra obra, do leitor se exige discernimento. Afinal, faz parte da leitura ativa pôr à prova os conceitos que são apresentados.
Gostou deste Bibliocanto?
Então mande um comentário ou clique no coraçãozinho.
Se não gostou aponte os problemas. Só assim vou melhorar.
Lembre-se, conhecimento bom é conhecimento compartilhado. Se você realmente gostou mande para quem pode se interessar pelo assunto.
DISCLAIMER:
Essa é uma produção independente, sem patrocínio de qualquer natureza.
As menções a obras são espontâneas e não constituem indicação de compra.
Esse material foi redigido por um humano sem uso de inteligência artificial.
Você pode usar trechos do texto, desde que cite a fonte.
Olá, professor Cleverson Desculpe a demora para responder. Eu recebo e-mail da FAPESP. Às vezes, aparecem textos que me interessam. No e-mail do dia 17/04/2025 saiu um assunto sobre linguagem também!! "Linguagem humana já estava presente há pelo menos 135 mil anos". É uma entrevista com um linguista chamado Sigheru Miyagawa. Eu não conheço esse linguista. Não sei se você leu. Se não leu, o link é https://agencia.fapesp.br/linguagem-humana-ja-estava-presente-ha-pelo-menos-135-mil-anos/54506 Abraços!!!
Olá Janete!
Quanto tempo!
Tudo bem?
Você não achou o texto sobre a linguagem porque ele virá na próxima semana aqui no Bibliocanto. Mas como você é cadastrada, recebe os conteúdos novos por e-mail, antes de serem publicados no site.
Adorei seu texto. Sim, esse é um assunto inesgotável. Já deu muito pano pra manga nos últimos dois séculos!
Apenas recentemente vi esses dados que apontam para a existência de algum nível de linguagem entre os Homo erectus. Isso escapou ao Eugen Rosenstock-Huessy.
Aliás, o livro dele sobre a origem da linguagem foi um dos que despertaram em mim esse interesse. Trata-se de um livro maravilhoso, daqueles que nos enchem de ideias.
Talvez eu faça uma resenha sobre ele e…
Olá, Prof Cleverson! Minha intenção era comentar sobre o último texto que você enviou: A LINGUAGEM COMEÇOU COM O HOMO ERECTUS ? Porém, eu não o achei aqui no site. Gostei do texto. Hoje, por coincidência, eu e o meu marido conversamos sobre como começou a linguagem. Foi uma conversa complicada. KKK Meu marido já tem até pós doutorado e eu um lato sensu. Mas meu marido não se impõe sobre a minha capacidade. Ele respeita o meu limite. É didático (claro, foi professor) e me explica tudo. Meu marido falou sobre o livro "A origem da linguagem", de Eugen Rosenstock-Huessy. Eu não li. Você já leu? Ele disse que é um bom livro. Pretendo ler. O teu texto é interessante, pois você…