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A ORIGEM DA LINGUAGEM

Atualizado: 4 de mai.

Até pouco tempo atrás, imaginava-se que a linguagem era uma característica exclusiva de nossa espécie, o Homo sapiens sapiens. Entretanto, avanços nos estudos da linguagem, novas descobertas arqueológicas e grandes desenvolvimentos na área da biologia permitiram ampliar essa percepção.

 

Os estudos sobre o tema tiveram novo impulso no final do século XX e uma obra pioneira dessa retomada é A origem da linguagem, de Eugen Rosenstock-Huessy. Descobertas arqueológicas recentes reforçam algumas das teorias desse autor.

 

Pelo que tudo indica, a linguagem se desenvolveu entre os hominídeos. Artefatos com 3,3 milhões de anos indicam algum nível de linguagem entre espécies de australopitecos. Mas seria o Homo erectus o grande herói no desenvolvimento da linguagem.

 

 Assim que surgiu, a espécie Homo sapiens adotou a linguagem e a aprimorou. Isso permitiu a sobrevivência, o desenvolvimento e a predominância de nossa espécie.

 

TEORIAS SOBRE A ORIGEM DA LINGUAGEM

 

No século XIX, a Societé de Linguistique de Paris proibiu a publicação em seus anais de qualquer investigação sobre a origem da linguagem. Ela considerava que esse era um tema especulativo demais, impossível de ser abordado cientificamente.

 

Devido ao prestígio daquela instituição, investigações naquela linha foram abandonadas. Apenas no final do século XX, o tema voltou a ser discutido, especialmente por conta do avanço de várias ciências.

 

Ao longo do tempo, os estudos linguísticos e antropológicos avançaram muito e a própria concepção de linguagem tornou-se mais complexa e abrangente. Também a biologia e as neurociências trouxeram mais luz sobre o fenômeno da linguagem. Além disso, os avanços da genética ampliaram muito a compreensão sobre a evolução humana.

 

As recentes descobertas arqueológicas, conduzidas com tecnologias e práticas avançadas, foram fundamentais. Hoje se sabe muito mais sobre o passado distante da humanidade do que há algumas décadas. Isso tudo alterou profundamente a percepção sobre o período paleolítico.

 

TEORIAS ACERCA DA ORIGEM DA LINGUAGEM

 

Os atuais recursos tecnológicos permitem investigações inimagináveis há pouco tempo, inclusive com modelagens computacionais para análise de línguas antigas. Por isso, os estudos sobre a origem da linguagem se desenvolveram muito.

 

Hoje há uma série de teorias sobre o tema, entre as quais se destacam:

 

TEORIA GESTUAL – os gestos teriam precedido a fala, que teria se tornado mais eficiente quando houve a necessidade de usar as mãos com ferramentas.

 

TEORIA FONOCÊNTRICA – a linguagem vocal, baseada em grunhidos e gritos, foi-se aprimorando ao longo do tempo.

 

TEORIA DA PROTOLINGUAGEM (Derek Bickerton) – uma “protolinguagem”, sem sintaxe complexa e baseada em palavras isoladas, teria evoluído para estruturas gramaticais mais complexas.

 

TEORIA EVOLUTIVA – baseada na adaptação biológica, a linguagem seria um traço que favoreceu a seleção natural da espécie, por oferecer vantagens para a sobrevivência em grupo. Noam Chomski argumenta inclusive que se trataria de um grande salto, resultado de uma mutação genética repentina.

 

TEORIA DA EXAPTAÇÃO (Stephen Jay Gould) – a linguagem seria resultado de uma exaptação, ou seja, uma característica que surgiu para uma função diferente teria sido "reaproveitada" para a linguagem. Assim, capacidades cognitivas ou motoras voltadas para certas funções podem ter sido reutilizadas para formar a linguagem.

 

TEORIA INTERACIONISTA – a linguagem teria surgido para fortalecer os laços sociais, coordenar ações em grupo, ensinar e transmitir cultura, mais do que apenas transmitir informações.

 

Há ainda estudos cujo foco é a linguagem dos animais, na busca de resposta para a origem da linguagem humana. Por se tratar de um campo predominantemente multidisciplinar, os estudos sobre a origem da linguagem tendem a combinar elementos dessas diferentes teorias.

 

Além disso, algumas obras de caráter mais ensaístico e filosófico também têm importância no âmbito da investigação sobre a origem da linguagem. Entre elas, uma das que mais se destacam é A origem da linguagem, de Eugen Hosenstock-Huessy.



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A ORIGEM DA LINGUAGEM PARA EUGEN ROSENSTOCK-HUESSY

 

A origem da linguagem, de Eugen Hosenstock-Huessy, é um livro de caráter filosófico e ensaístico. Com amplo uso de metáforas e outras figuras de linguagem, o autor não usa termos “técnicos” para tratar do tema. Ele tampouco se apega às teorias mais correntes, na verdade, a base de sua análise recorre aos processos gramaticais.

 

O livro é póstumo, foi publicado em 1981, e é, assim, uma obra pioneira na reabilitação dos estudos sobre a origem da linguagem. Por isso, logo de saída, o autor critica as abordagens sobre o tema propostas pelas teorias da linguagem em voga nos anos de 1970.

 

A crítica do autor recai no fato de os estudos sobre linguagem da época se concentrarem em atos de fala básicos e informais. Ele aponta, então, para o caminho oposto: investigar a origem da linguagem tomando a linguagem formal e elevada como seu objeto de revelação. Para o autor, a linguagem estruturada e formal é a realização máxima da linguagem.

 

De acordo com essa concepção, as interações informais, cotidianas, não seriam muito diferentes das interações dos animais. E a linguagem do homem se diferenciaria justamente por sua complexidade e estruturação. Logo, para investigar a origem da linguagem cabe analisar a linguagem formal e estruturada.

 

FORMALIDADE E INFORMALIDADE

Popularmente, a formalidade é tomada como uma ação de certa forma “burocrática”, quando modos de dizer ou de se comportar precisam ser mais bem medidos e seguir uma certa praxe. Mas a formalidade também está muito entranhada em nossos atos cotidianos.

 

Somos, por exemplo, mais “cerimoniosos” no trabalho do que em casa. Da mesma forma, ao tratarmos com pessoas em ambiente mais formais utilizamos vocabulário e formas verbais mais apuradas e caprichamos na flexão verbal e nominal. É assim, é normal.

 

Por outro lado, usando linguagem mais informal diminuímos o distanciamento e respeitabilidade de algo ou alguém. Isso normalmente é feito para que haja maior aproximação e pessoalidade. De acordo com Rosenstock, a informalidade é uma reação à formalidade.

 

Assim, a formalidade precede a informalidade, reagindo àquela. Mas como seria isso possível?

 

De acordo com o autor:

“Lógica e historicamente, a linguagem formal antecede a informal, e sucede à linguagem animal. Antecipando nosso resultado, podemos falar em: 1. Linguagem animal pré-formal; 2. Linguagem humana formal; 3. Linguagem informal, desleixada. A linguagem informal vale-se tanto da pré-formal quanto da formal; ela é um composto das duas.” (ROSENSTOCK-HUESSY, p. 40)

 

Ou seja, há um salto da linguagem pré-formal para uma linguagem formal, que predominou e predomina entre os grupos humanos adultos, em ambientes formais. A informalidade é a reação, por isso os grupos informais, como crianças numa creche, jovens de uma gang ou um pelotão de soldados, tendem a rebaixar a linguagem à informalidade.

 

Para o autor, buscar respostas sobre a origem da linguagem nas crianças e nas interações do dia a dia é manter-se perto da linguagem dos animais. Por Isso, o olhar deve se voltar para os atos formais de linguagem.

 

Essa é a razão de Rosentock se opor aos processos correntes da linguística e da filosofia em buscar nas interações do dia a dia respostas sobre a origem da linguagem. Para ele, é necessário fazer investigação entre homens adultos, em ambientes formais.

 

COMO SE DEU O SALTO DA LINGUAGEM PRÉ-FORMAL PARA A FORMAL?

 

Na visão de Eugen Rosenstock-Huessy, o grande salto entre a linguagem pré-formal e a formal foi o estabelecimento dos nomes (substantivos). Eles seriam um dos principais diferenciais entre a linguagem humana e dos animais.

 

Os sons dos animais são pré-gramaticiais, sem ordem sintática complexa ou classes de palavras. A linguagem do homem, porém, é articulada, gramatical. As crianças usam estruturas informais, em gírias.

 

A fala adulta, complexa e formal objetiva a formação da visão do interlocutor. Para tanto, ela é formativa e precisa de artifícios mais bem estruturados. O mais básico desses artifícios é o nome.

 

“As formas gramaticais e os nomes podem ser considerados os sintomas que provam que a linguagem animal foi superada pela linguagem humana articulada” (ROSENSTOCK-HUESSY, p.43).

 

Por mais que a linguagem de baleias, golfinhos ou pássaros seja articulada, ela não tem nomes. Um animal não pode nomear algo, assim, não há possibilidade de construir cultura, nominar entes, objetos ou sensações. Os nomes são fundamentais numa linguagem formal, que pode ser então chamada linguagem nominal.

 

Os nomes são a realização grandiosa da linguagem humana, de acordo com Rosenstock-Huessy. O autor dá tanta importância aos nomes que desenvolve a seguinte classificação:

 

Linguagem pré-formal ► pré-nominal

Formal ► nominal

Informal ► pronominal

 

A linguagem pré-formal não apresenta nomes, é a dos animais.

A linguagem formal é baseada no nome.

A linguagem informal é pré-nominal, pois recorre aos pronomes e a estruturas simplificadas.

Na linguagem informal predominam os pronomes, substituindo os nomes e assim diminuindo o tom da linguagem. É fácil perceber que falar formalmente é recorrer aos nomes das coisas e dos indivíduos, adicionando certo tom cerimonial ao discurso. Na intimidade isso não ocorre, pois utilizamos mais gestos e pronomes.

 

Em outras situações, que ficam entre a formalidade e informalidade, como nas histórias infantis, nos papos de vendedor, nas fofocas, piadas, propagandas e programas de tv, ocorre certa indecisão entre as formalidade e informalidade. Nesses casos, a linguagem é nominal, recorrendo a gestos, insinuações e sugestões dentro do domínio do pronome (ROSENSTOCK-HUESSY, p. 45)

 

Essa linguagem diminuída não é necessariamente ruim, na verdade ela funcionaria como uma proteção contra o desgaste e banalização dos nomes. Isso se dá por meio do uso de apelidos, formas curtas e pronomes.

 

“Os pronomes protegem os nomes nos lugares e momentos em que seu uso não é autêntico. Procurando o lugar autêntico da linguagem, agora encontramos o lugar autêntico da linguagem pronominal: onde a linguagem formal está fora de contexto, entram os pronomes.” (ROSENSTOCK-HUESSY, p.46)

 

ATUALIDADE E APLICABILIDADE DOS CONCEITOS DO AUTOR

 

As ideias de Rosentock-Huessy em relação à origem da linguagem são bem amplas e complexas. Merecem a leitura, com certeza. Aqui para nosso caso, entretanto, podemos destacar apenas alguns pontos.

 

Em primeiro lugar, a definição de uma linguagem pré-gramatical ou pré-nominal é muito interessante se aplicada ao caso do desenvolvimento da linguagem entre os hominídeos.

 

É interessante notar que os resquícios arqueológicos de 200 mil anos atrás revelam preocupação com o pós-morte (funerais) e a representação de pessoas (Vênus de Tan-Tan e Vênus de Berekhat Ram).

 

Seria esse mais ou menos o momento de nominalização da linguagem de que fala o autor?

 

Pode ser. Esses objetos revelam interesse na figura humana, que já deveria estar sendo nomeada. Essas representações de humanos devem ter sido nomeadas. Se a hipótese do autor estiver certa, podemos definir esse como o período de emergência da linguagem.

 

É bem provável que o surgimento dos nomes tenha se dado formalmente mesmo, em situações ritualísticas.

 

Toda e qualquer atividade religiosa implica em invocação do nome sagrado. Então, nada mais justo de se pensar que os primeiros nomes invocados o foram em situações religiosas, formais e sagradas. Os nomes estariam, assim, envolvidos em uma estrutura privilegiada de formalidade.

 

Mais tarde, os nomes foram sendo multiplicados entre outros objetos e na nomeação dos indivíduos. Entretanto, essa nomeação deveria se revestir de formalidades e cerimonialismo, ficando para as práticas diárias a linguagem pronominal reduzida.

 

É preciso lembrar que a nossa espécie surge por volta de 130 mil ou 120 mil anos atrás, algumas dezenas de milhares de anos depois dessas primeiras Vênus paleolíticas. Isso indica que o Homo sapiens seria um herdeiro da linguagem.

 

Estudos recentes indicam que a aquisição da linguagem deve ter ocorrido na aurora de nossa espécie, em local bem específico, pois só assim se explica que toda a humanidade moderna tenha linguagem. As posteriores divisões entre grupos definiriam as diferentes línguas, mas a linguagem humana em si estava garantida.

 

Eventualmente, os grupos hominídeos anteriores não tiveram a mesma chance, com cada espécie desenvolvendo a linguagem a seu modo ou sequer desenvolvendo-a.

 

Essa, porém, é uma análise complexa, que demanda maiores e mais profundas observações. Mas, aqui entre nós, é interessante observar que as teorias de Eugen Rosenstock-Huessy lançam luzes sobre a questão da origem da linguagem. Na verdade, as ideias do autor até se reforçam sob o impacto de novas descobertas arqueológicas.

 

BIBLIOGRAFIA:

ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. A origem da linguagem. Trad. Câmara, Pedro Sette et alii. Rio de Janeiro/São Paulo, 2002.


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