Bibliocanto Volume X
- Ribas Carneiro
- 5 de jun. de 2023
- 9 min de leitura
Olá pessoal!
Neste Bibliocanto abordo o tema gentilmente sugerido pelo amigo Oscar: a história de Gonneville e sua viagem ao Brasil em 1503.
Uma história fascinante, ainda pouco conhecida, que merece destaque.
A Relação da viagem do capitão Gonneville apresenta uma das primeiras descrições dos índios que habitavam a costa do Brasil:
“Dizem também que, durante sua permanência na dita terra, conversavam cordialmente com as gentes dali, depois que elas foram cativadas pelos cristãos por meio de festas e pequenos presentes que estes lhes faziam; sendo tais os índios gente simples, que não pediam mais do que levar uma vida alegre sem grande trabalho.”

Iluminura oriunda da Crónica de Dom Afonso Henriques mostrando uma vista panorâmica de Lisboa entre 1500 e 1510. Trata-se da mais antiga representação da cidade. Por essa época, o comerciante francês Jean Binot Paulmier de Gonneville frequentava esse porto em suas transações comerciais.
A VIAGEM DE GONNEVILLE (1503-1505)
Um dos primeiros exploradores europeus a chegar à costa do Brasil após Pedro Álvares Cabral era um francês. Personagem principal de uma viagem extraordinária, cheia de aventuras e que se tornou um marco na história das primeiras explorações da América.
Jean Binot Paulmier de Gonneville era um rico armador e comerciante de Honfleur, na Normandia, noroeste da França. Habituado às navegações no Atlântico Norte e nos mares nórdicos, em 1503 pode ver em Lisboa as riquezas que os portugueses tinham trazido de sua expedição ao Oriente, após a descoberta do caminho para as índias por Vasco da Gama.
Ele viu ali uma grande oportunidade e organizou uma expedição de maneira um tanto temerária, sem mapas ou informações detalhadas. Retornou para sua cidade com dois portugueses que diziam terem feito a rota para o Oriente e lá armou a nau l’Espoir (Esperança).
Como um bom armador, preparou seu navio com tudo, armas, material para troca e víveres para dois anos. Arranjou ainda um dos melhores pilotos da região, bons tenentes, um médico e equipagem de 60 marinheiros. Além deles, 10 cidadãos embarcaram para conhecer novas terras.
L’Espoir partiu de Honfleur a 24 de junho de 1503. Tudo correu bem até chegarem a Cabo Verde e cruzarem a Linha do Equador. Gonneville tinha consciência de que ali começava verdadeiramente sua expedição pelo caminho de Vasco da Gama. Começaram, então, a “grande volta”, ou seja, a prática de afastamento da costa africana para tomar melhores ventos e correntes em direção ao sul.
A partir daí começaram os problemas. Em setembro, os primeiros homens da tripulação começaram a sofrer com o escorbuto e um dos “turistas” normandos morreu. No começo de novembro, estavam no meio do Atlântico Sul, prestes a mudarem a direção para leste, mas repentinamente o piloto morreu. Ele que era o grande garantidor daquela viagem, por suas qualificações superiores. Para piorar, uma tempestade se abateu sobre a nau, seguida de uma longa calmaria. Gonneville não sabia se orientar pelas estrelas do sul e os dois portugueses que tinha contratado revelaram-se completamente inúteis.
A situação desesperadora durou vários dias, mas surgiram, de repente, algumas plantas aquáticas e pássaros. Esses eram sinais evidentes de terra a oeste. O capitão queria salvar o navio e a tripulação, então desistiu de sua viagem para o oriente e rumou para a direção contrária.
Em 5 de janeiro de 1504, avistaram um estuário. Ali eles passariam cerca de seis meses, numa experiência quase paradisíaca. Foram bem acolhidos pelos indígenas, provaram o clima temperado, as frutas da região e se maravilharam com a profusão de pássaros coloridos. Gonneville batizou o lugar de Índias Meridionais. Hoje se sabe que a região em que ficaram é possivelmente onde a Ilha de São Francisco, em Santa Catarina.
Em julho, eles tinham reparado o navio e reposto o estoque de víveres. Agora, preparavam-se para a viagem de volta. O chefe indígena confiou a Gonneville um de seus filhos, Essomerique, e o capitão francês prometeu trazê-lo de volta em breve.
A viagem de retorno foi tão espetacular e assustadora quanto a de ida. Eles seguiram pela costa rumo norte. A certa altura, um grupo de marinheiros foi à terra pegar mantimentos, mas foi atacado por um grupo de canibais.
Em fevereiro de 1505, iniciaram a travessia de retorno. Pegaram uma rota direta para o norte e entram numa região de muitas tempestades, dessa forma foram dar às costas da Irlanda. Após a escala forçada, dirigiram-se ao Canal da Mancha. A 7 de maio, passando ao largo da Ilha de Jersey, foram abordados por um navio pirata inglês. Na fuga, encalharam próximo à Ilha de Guernessey, os piratas atacaram, mataram muitos homens, pilharam e destruíram o navio.
Tendo perdido tudo, Gonneville, o jovem Essomericq e 28 marinheiros, entre eles aqueles dois portugueses, conseguiram finalmente desembarcar na costa normanda e chegaram à pé, no dia 28 de maio de 1505, à cidade de Honfleur.
Não havia restado nada, nenhuma pele de animal, nenhuma das valiosas madeiras, nem as plumas exóticas. Mas pior mesmo foi a perda de documentos preciosos, como os diários de bordo, cartas náuticas e os desenhos feitos por um dos passageiros que acabou devorado por canibais.
Para abrir um processo de restituição, o capitão redigiu a “Relação” de sua viagem. Esse relato se tornou o registro daquela viagem extraordinária.

Valard Atlas, 1547, mostrando a costa do Brasil.
ESSOMERICQ, O PRIMEIRO ÍNDIO NA FRANÇA Ao longo dos seis meses de convivência, Gonneville e sua tripulação desenvolveram uma genuína amizade com os índios. Essa relação resultou num ato surpreendente. O chefe indígena, Arosca, tinha seis filhos homens, com idades entre os 30 e 15 anos, e entregou o mais novo deles a Gonneville. Seu objetivo era que o rapaz aprendesse a arte da fabricação das armas de fogo e qualquer outra tecnologia, com as quais aquela tribo poderia enfrentar seus inimigos. O capitão prometeu trazê-lo de volta em vinte luas. Esse rapaz ficou para a história como Essomericq, nome que é uma possível corruptela de Iça-mirim, ou Pequeno-chefe, por conta da difícil transcrição dos sons do guarani. Ele seguiu acompanhado de um índio de mais ou menos 35 anos chamado Namoa, que morreu durante a viagem de retorno, quando a tripulação foi acometida de escorbuto. Essomericq também ficou muito mal. Temendo o mesmo fim para o jovem, Gonneville se questionou se deveriam batizá-lo para salvar sua alma. Após deliberarem, batizaram o rapaz com o nome do capitão. Logo depois do batismo, o agora Essomericq Binot Paulmier sarou. Depois de sofrerem juntos todas as tragédias da viagem de retorno, Gonneville viu-se impossibilitado de cumprir sua promessa de fazer retornar o rapaz para seu pai. Como não tinha descendentes, decidiu adotá-lo como filho, inclusive fazendo-o herdeiro de seus bens e casando-o com uma rica parente sua. Essomericq tornou-se um burguês muito bem posicionado na sociedade de Honfleur. Ele teve um total de quatorze filhos e viveu 95 anos, uma idade extraordinária para a época. Seus descendentes mantiveram posição influente na região por muito tempo.

A gélida e inóspita Ilha Bovet, descoberta pelo capitão francês Lozier-Bovet num esforço de descoberta das “terras austrais”, que teriam sido visitadas por Gonneville. OS DESCENDENTES DE ESSOMERICQ E A TEORIA COLONIAL FRANCESA Um século e meio depois da aventura de Gonneville, surgiu um novo imposto para todos os imigrantes e seus descendentes na França. O conhecido abade Jean Paulmier recebeu surpreso a notificação de que deveria pagar o novo imposto e que era considerado um estrangeiro no país onde nascera. A lei francesa julgava que ele era estrangeiro por ser descente de Essomericq. Paulmier e seus parentes abriram um processo contra a cobrança e tiveram de provar que eram franceses. O abade buscou os documentos da família, levantou a história da viagem de Gonneville e descobriu sua “Relação” na Biblioteca do Almirantado. Ele pediu então, para o Rei Luís XIV, a autorização para obter uma cópia daquele documento. Com a cópia, Paulmier conseguiu provar, a 30 de agosto de 1658, que aquele indígena tinha chegado à França contra sua vontade e por isso não era um imigrante. Além disso, ele tinha sido adotado pelo capitão Gonneville e não herdado sua nacionalidade por conta de seu casamento. Tudo foi resolvido, a cobrança não foi feita, mas Paulmier, maravilhado com a história da viagem e da descoberta das terras austrais (terras do sul), prosseguiu com sua investigação. Ao saber mais sobre aqueles povos do sul, o próximo passo do abade foi tentar evangelizá-los. Para tanto buscou uma autorização em Roma para começar uma missão naquelas terras, mas teve seu pedido negado. Paulmier, entretanto, não desistiu completamente e encontrou em seu amigo, Étienne de Flacourt, alguém com quem compartilhar seus projetos. Flacourt era diretor-geral da Companhia Francesa do Oriente, defendeu em seu livro de 1660, Histoire de la grande île de Madagascar, que a França deveria explorar as terras ao sul. Influenciado pelas ideias de Flacourt, o abade Paulmier publicou seu próprio livro em 1663. Nele, ele reproduzia parte das memórias de seu antepassado e defendia, contrariando o que havia sido registrado na “Relação”, que ele teria ido para o Oceano Índico e descoberto terras austrais. Gonneville seria, assim, um pioneiro do projeto antártico francês de colonização das terras do sul. Talvez influenciado pelo livro de Paulmier, o grande capitão francês pertencente à Companhia das Índias, Loziert-Bouvet, também considerou que Madagascar, as Ilhas Maurício e outras tantas possíveis e imagináveis terras do sul deveriam ser colonizadas pelos franceses. Ele chegou a organizar, com o apoio da Companhia, uma grande expedição exploratória. Em 1738, Bouvet se dirigiu aos mares antárticos em dois navios e quase pereceu com toda sua tripulação devido às dificuldades de navegação naquela região, sem equipamento adequado, em pleno século XVIII. Ele descobriu uma ilha, que hoje pertence à Noruega, justamente batizada Ilha Bouvet. Em seu retorno, reconheceu que as terras austrais eram impraticáveis para a construção de um entreposto ou para qualquer outra exploração comercial. Esse revés, porém, não fez desaparecer o sonho edênico de um paraíso terrestre ao sul. A partir ainda daquelas ideias de uma “Terra de Gonneville” por descobrir ao sul, em 1771, outro capitão da Companhia das Índias, Mario-Dufresne, organizou uma expedição. Explorando as águas ao sul do Oceano Índico, ele descobriu as Ilhas Edouard et Marion e as Ilhas Crouzet. A viagem acabou de forma trágica, o capitão e outros 40 marinheiros morreram ao serem atacados por indígenas, provavelmente canibais, na região do Oceano Pacífico. Ainda em 1771, o tenente Kerguelen comandou outra expedição para a região dos mares do sul e descobriu as ilhas que receberam seu nome: as Ilhas Kerguelen. Trata-se de um território gélido, coberto de neve, rochoso, totalmente inabitável. Mas a descrição do tenente foi totalmente favorável; em seu relatório ele descreveu um verdadeiro Éden, cheio de florestas, terras riquíssimas em minérios e extremamente férteis. Assim, o governo francês preparou uma nova expedição àquelas ilhas, com aprovisionamento completo para os colonos que seriam embarcados. Mas dessa vez o líder da expedição teve de reconhecer que aquele lugar não oferecia nenhuma condição de sobrevivência. Ele então desviou os colonos para Madagascar. Kerguelen foi processado por seu relatório anterior e também por diversos outros crimes, como contrabando, desobediência etc. Mas o mito de um novo mundo austral só caiu por terra com a expedição do inglês James Cook, que entre 1776 e 1778 explorou os mares do sul e chegou à conclusão de que não havia um outro continente no Pólo Sul. As utopias, porém, não morrem tão facilmente. Em 1791, um certo Laborde afirmou que as “Terras de Gonneville” existiam e estariam ao sul da Nova Zelândia! Mas os tempos já eram outros. A era dos descobrimentos tinha acabado com o mapeamento daquelas últimas gélidas ilhas rochosas. Apenas no século XIX foi reencontrada a cópia da “Relação” de Gonneville, aquela pedida ao Rei Luis XIV por Paulmier. A “Relação” foi então editada e publicada pelo geógrafo e historiador M. D’Avezac. A partir do texto, ele conseguiu identificar com precisão que Gonneville tinha atingido com sua nau l’Espoir a região em Santa Catarina, muito provavelmente a ilha de São Francisco. Os dados antropológicos reforçam essa tese, pois estão de acordo com outros relatos dos índios carijó, ou guaranis, habitantes daquela região na época. SERVIÇO A história de Gonneville e Essomericq foram abordadas apenas de maneira muito esparsa pelos estudiosos dos dois lados do atlântico. No Brasil, Leyla Perrone-Moisés é a grande autora sobre o assunto, por isso, se se interessar pelo assunto veja:
PERRONE-MOISES, Leyla. Vinte Luas – Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil 1503-1505. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Há outro artigo dela, “Essomericq, o venturoso carijó”, que trata das diferentes recepções que essa história teve ao longo do tempo. O artigo foi publicado em:
NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
QUESTÃO DA SEMANA Semana passada perguntei qual era o quadro ou pintor favorito dos estimados leitores. Não houve respostas e também não tive condições de analisar a questão das pinturas mais populares para falar aqui. Vou anotar essa questão para um futuro Bibliocanto. Mas vocês podem contribuir, indiquem lá seus quadros ou pintores favoritos. QUESTÃO PARA A SEMANA Esse Bibliocanto foi monotemático. Falamos exclusivamente da viagem de Gonneville e seus desdobramentos. Por isso, pergunto se você prefere Bibliocantos monotemáticos ou aqueles em que há uma variedade de assuntos. Indique mandando um e-mail, é dessa forma que é possível melhorar essas lições.
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