Bibliocanto Volume VIII
- Ribas Carneiro
- 8 de mai. de 2023
- 11 min de leitura
Atualizado: 21 de mai. de 2023
Olá pessoal!
Essa curta lição começa com uma citação de Jules Payot, autor de A educação da vontade:
"O domínio de si mesmo, com efeito, implica na reconquista do eu em face das mil sugestões do mundo exterior, mas implica também, e sobretudo, no império da inteligência sobre as potências cegas da sensibilidade."
Nesses tempos que vivemos, parece que nada é mais deslocado que a defesa do autocontrole em relação às tentações do mundo. Porém, não é esse um resultado da consciência da realidade, saber resistir às manobras que o discurso dominante impõe?
Boa leitura!

Segunda Armada dirigida para as Índias. In: Memória das Armadas que de Portugal passaram à Índia. Cerca de 1568. Academia de Ciências de Lisboa.
OS ESPANHÓIS DESCOBRIRAM O BRASIL
Há poucos dias, num Bibliocanto, indiquei que Pedro Álvares Cabral navegou em direção a oeste sabendo muito bem que encontraria terra e que deveria tomar posse dela em nome da Coroa Portuguesa.
Na verdade, ao redor desse evento, criou-se a narrativa da descoberta por acidente, motivado por uma tempestade. Mas ao longo do tempo, foram revelados documentos que jogam por terra essa teoria. A própria Carta de Pero Vaz de Caminha revela que não houve tempestade. Além disso, outros dados da época corroboram a intencionalidade da viagem.
Oito anos antes da viagem de Cabral, Cristovão Colombo tinha descoberto terras a oeste. Ele não sabia que se tratava de um novo continente, imaginava que estava a caminho de Cipango (o Japão). Nos anos seguintes, as viagens dos espanhóis para as novas terras se multiplicaram rapidamente e aos poucos começou-se a duvidar de que se tratava realmente do Oriente.
Em 1497, ou seja, cinco anos após as descobertas de Colombo, Vasco da Gama iniciou sua viagem de contorno da África e descoberta da rota para as Índias.Foi um duro golpe para a Espanha. A rota oposta à de Colombo garantiu aos portugueses a primazia da exploração do Oceano Índico e constituiu-se na coroação de um esforço de muitas décadas. Mas isso não significava que as terras a oeste seriam ignoradas pela coroa portuguesa.
Entre a viagem de Colombo e a de Vasco da Gama é fácil imaginar que houve a ação de espiões portugueses nas navegações espanholas; a espionagem era regra, basta lembrar que houve ao menos um espião italiano na viagem de Cabral, o autor da Carta do piloto anônimo.
O fato é que Cabral seguiu rota segura em direção de terras mais ao sul das rotas espanholas. Mas ele não foi o primeiro. Há ao menos duas viagens documentadas de espanhóis que estiveram antes de Cabral na costa do futuro Brasil: a de Vicente Yañez Pinzón e a de Diego de Lepe.

Retrato de Vicente Yañez Pinzón. Por: Julio Garcia Condoy, 1956.
PINZÓN E SUA VIAGEM ÀS COSTAS DO SUL
Vicente Yañez Pinzón era um navegador experiente. Ele participou da organização e da primeira expedição de Cristovão Colombo, como capitão da nau Niña.
Seu principal talento se revelou no recrutamento de marinheiros na cidade de Palos, na Espanha, para aquela viagem rumo ao desconhecido. Após a expedição gloriosa de Colombo, Pinzón participou de outra de guerra no Mediterrâneo, mas voltaria às Américas no ano de 1499.
Desde a descoberta daquelas terras por Colombo, a Coroa Espanhola investia recursos para a descoberta de um caminho para o Oriente, sem saber ainda de que se tratava de um novo continente. Para ajudar naquele esforço, os reis autorizaram que particulares a também explorar aquela região.
Nesse momento, Pinzón armou sua própria expedição. Contando apenas com recursos próprios e uma tripulação bastante preparada, ele partiu de Espanha em 1499 e passou pelo arquipélago de Cabo Verde, de onde partiu rumo a oeste em 13 de janeiro de 1500.
Seu destino eram as ilhas mais ao sul do Caribe, que tinham sido avistadas por Colombo em uma expedição realizada havia pouco mais de um ano. Os primeiros dias de viagem foram tranquilos como esperado, mas a 21 de janeiro, quando a frota cruzou a linha do Equador, eles foram atingidos por violenta tempestade que durou uma semana.
Dessa forma, eles realizaram uma da travessia muito rápida entre Cabo Verde e a costa do Brasil, gastando apenas 13 dias. Isso numa rota que, durava normalmente cerca de um mês, como no caso da travessia de Cabral.
Outro efeito daquela tempestade foi um inesperado desvio que os levou para um cabo, que eles denominaram de “Santa Maria de la Consolación” (evidente homenagem à Santa que os consolava com aquela vista depois de tantos perigos). Esse local é o atual Cabo de Mucuripe, no Ceará. Lá a frota permaneceu apenas um ou dois dias e os homens teriam visto grandes fogueiras na praia à distância.
Partiram dali e seguiram cerca de 100 km e pararam à foz de um rio, provavelmente o Rio Curu, próximo de onde hoje fica Fortaleza. Lá eles avistaram cerca de 40 índios na praia.
Foram enviados quatro escaleres, embarcações pequenas, com soldados a bordo. Eles tentaram entrar em contato com os índios com guizos, colares e espelhos, mas não obtiveram sucesso. Um dos nativos teria atirado uma vara dourada e um dos marinheiros se aproximou e abaixou para pegá-la. Nesse momento os índios se atiraram sobre ele, matando-o com golpes de tacape. Um conflito explodiu entre espanhóis e indígenas.
A frota se retirou desse local no dia seguinte e seguiu para o norte, costeando o litoral até chegar ao maior rio do mundo. Pinzón chamou aquele rio extraordinário de Mar Dulce e o explorou até cerca de 300 km para dentro do continente. Dessa região ele teria levado 36 indígenas como escravos para a Espanha.

Primer desembarco de Cristóbal Colón en América. Por: Dióscoro Pueba, 1862.
O RELATO DE PINZÓN O navegador relatou sua viagem a Pietro Martira Anghiera, que a registrou em sua De Orbe Novo Decades Octo ( As Oito Décadas do Novo Mundo). Nesse relato, chama a atenção que, enquanto a expedição de Pedro Álvares Cabral teve um encontro amigável com os nativos, o contato de Pinzón não poderia ser mais diverso. O que teria acontecido de diferente? Deve-se primeiro considerar que Cabral teve um encontro com os Tupiniquim, enquanto Pinzón entrou em contato com os Potiguar, um povo mais agressivo. Mas é muito provável que Pinzón não tenha contado a história inteira. Cabral aventou a possibilidade de aprisionar alguns nativos, mas preferiu manter o clima amistoso e deixou essa ideia de lado. Pinzón, por seu turno, afirmou ter levado 36 indígenas para serem vendidos como escravos na Espanha. Isso indica que talvez o capitão espanhol tenha tentado prender alguns índios, o que levou ao conflito. Mais contundente é o relato de seu primo, Diego de Lepe, que comandava uma outra expedição na mesma época e na mesma região. Enquanto navegava pela região da Ilha de Marajó, Lepe encontrava aldeias fumegantes e índios enfurecidos. Eles tinham sido provavelmente atacados por Pinzón e sua frota. A EXPEDIÇÃO DE DIEGO DE LEPE Os registro relativos a essa expedição são em menor número, mas sabe-se que Lepe saiu do Cabo Verde mais ou menos na mesma época que Pinzón. Em fevereiro de 1500 ele teria chegado em algum ponto entre, hoje, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Seguiu para o sul, mas percebendo que a costa se inclinava para sudoeste, inverteu a direção e seguiu para o norte. Nessa ocasião ele teria visto as aldeias atacadas por Pinzón. As duas frotas se cruzaram em algum momento sem se terem visto. Explorando o litoral, Lepe teve contato apenas com nativos furiosos. Numa ocasião, 11 de seus homens tinha descido até um rio para pegar água. Lá foram atacados e mortos à beira de uma praia. Mesmo assim, ele capturou cerca de 20 nativos e os levou como escravos para a região do Caribe, onde já havia alguns vilarejos dos espanhóis. A viagem de Diego de Lepe está registrada em três fontes: uma carta dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, para o bispo de Córdoba; a narrativa da viagem por Frei Bartolomé de Las Casas; menções feitas à expedição num processo judicial chamado de Probanças del Fiscal. RESULTADOS PRÁTICOS DAS EXPEDIÇÕES DE PINZÓN E LEPE As expedições dos espanhóis se deram em território que já estava definido como português pelo tratado de Tordesilhas, de 1494. Por isso mesmo, não passaram de meros atos de reconhecimento do território. Essas duas viagens serviram, assim, apenas para complementar o conhecimento dos espanhóis em relação à região. No entanto, os dois navegadores estavam presos à concepção de Cristóvão Colombo de que era possível atingir o Oriente navegando sempre para o Oeste. Por isso, Pinzón, ao navegar pelo Mar Dulce, ou Rio Amazonas, sugeriu que tal imensidão de água deveria ter sua nascente em uma grande cadeia de montanhas, no que estava certo. Porém, ele acreditava que se tratava da parte externa do famoso Rio Ganges. Mais ou menos pela época dessas expedições, já se começava a questionar que aquelas terras recém-descobertas seriam uma parte da Ásia. Estava para se iniciar uma nova fase do processo colonizador das Américas, inclusive com o surgimento de novos navegantes e cartógrafos com outra visão, entre eles Américo Vespúcio.
PRATICANDO INGLÊS COM PEÇAS DE TEATRO Você que gosta de praticar inglês, já leu uma peça no original acompanhando uma performance teatral no Youtube? Recomendo! Realizei a experiência e foi muito interessante tanto em termos de treino de língua estrangeira quanto em relação à percepção estética. A seguir faço um breve relato dirigido a quem gosta de treinar o inglês em nível avançado, para aqueles que gostam de se aprofundar na literatura, nas artes dramáticas e particularmente em Samuel Beckett.

Captura de imagem da peça Waiting for Godot, de Sameul Beckett. Performance de: Naseer's Motley Group in The Rose Bowl.
Como realizei a experiência?
Reli a peça Waiting for Godot, de Samuel Beckett, mas agora acompanhando a performance teatral com vídeos disponíveis no Youtube. Complementei assistindo alguns pequenos trechos de atuação dos renomados intérpretes da obra beckettiana, Sir Ian McKellen e Sir Patrick Stewart.
Resultados em termos linguísticos
Claro que na leitura de uma peça em inglês a própria experiência de língua estrangeira é renovada, pois literatura é linguagem viva numa de suas formas de expressão mais complexas, em que entram em jogo diversas camadas de sentido.
Isso é muito mais evidente numa peça como Waiting for Godot, uma das principais obras do século XX. A leitura atenta, cuidadosa e criteriosa desse texto permite uma experiência linguística profunda. E já poderíamos ficar por aí. Mas realizar a releitura do texto acompanhando uma das interpretações disponíveis no Youtube amplia a percepção linguística.
Esse tipo de experiência faz o suporte textual ganhar forma oral, com toda a riqueza de tons de voz, interjeições, risos e chistes a se realizarem enquanto os olhos acompanham o texto. Também faz emergir a contextualização dos gestos, dos movimentos, enfim, o texto, já rico por si, preenche-se de outras relações da língua viva.
Trata-se de um belo laboratório para o estudante! Um exercício que enriquece a experiência auditiva e de consciência das palavras em inglês.
Resultados em termos literários
Em termos literários foi uma experiência diferente. Eu conhecia bem a obra, já tinha lido mais de uma vez, mas nunca havia assistido uma montagem da peça. Digamos então que minha leitura foi até então mais “literária” e menos “dramática”. Quero dizer com isso que eu apreendia bem a narrativa, a construção dos personagens, o desenrolar mesmo do drama, mas, como vim a perceber, algumas nuances escapavam-me.
À medida que fui acompanhando a leitura do texto com a performance em vídeo, percebia algumas dessas nuances, alguns detalhes, e a coisa toda ganhou uma profundidade que eu não tinha alcançado antes. Por exemplo, há trechos na peça que eu lia mentalmente de forma trágica, mas que na interpretação teatral se apresentou de forma cômica. Essa alteração de contexto permitiu perceber novos sentidos para certos termos e sentenças e, é claro, alterou e compreensão literária do texto.
Afinal, os atores usam tons de voz, pausas e gestos que não estão necessariamente marcados nas rubricas da peça. Deve-se considerar aqui que Beckett gostava dos filmes de Chaplin e Buster Keaton; era sua intenção que suas peças tivessem o humor e aqueles movimentos rápidos do cinema mudo. Numa leitura atenta podemos até imaginar isso, mas o suporte visual amplia muito a experiência.
O uso de peças para estudar inglês
Há tempos as peças têm sido exploradas pelos professores de língua estrangeira. Isso se dá porque o texto literário por si já é necessariamente uma construção linguística complexa, que um conhecedor avançado de língua estrangeira deve ser capaz de acessar. As peças teatrais, por sua vez, são particularmente interessantes para os estudantes, pois além da complexidade estética e linguística ainda mantêm elevado nível de oralidade, mesmo em formato escrito.
Devemos lembrar, ainda, que durante muito tempo era uma prática comum que centros de língua mantivessem grupos teatrais em que os estudantes podiam atuar na língua-alvo. Não sei como está hoje, mas cheguei a assistir peças de algumas escolas de línguas.
Por que ler Samuel Beckett?
Trata-se de uma escolha pessoal. Entre tantas peças que líamos nas aulas de literatura no Curso de Letras, Waiting for Godot em especial causou-me grande impressão. Era umas das melhores peças que tínhamos lido naquele semestre, tratava-se de uma dupla recompensa, pois também havia o orgulho de ler (e entender!) um texto daquela qualidade no original.
Lembro de ter ficado tão empolgado que acabei lendo outra peça de Samuel Beckett, Play, e ter ficado ainda mais impressionado. Foi então que li outras peças do teatro do absurdo, sendo Eugène Ionesco e Harold Pinter os autores que mais me ficaram na memória.
Por que recorrer aos vídeos do Youtube?
Agora, décadas depois, voltei a Samuel Beckett. Dessa vez me propus a ler toda a sua obra dramática. O autor é revolucionário, um experimentador incrível e suas peças não necessariamente se enquadram nos esquemas da dramaturgia tradicional. Em algumas o experimentalismo é tal que a leitura, em termos literários, fica truncada.
Em uma peça tradicional o fio condutor é constituído pelos diálogos e as rubricas têm um valor acessório. Em Beckett é um bocado diferente, em muitos casos há muitas rubricas em meio a interjeições curtas dos personagens.
Nessa altura senti a necessidade do contato com a performance para uma completa compreensão textual. Decidi, então, recorrer à tecnologia. Busquei no Youtube as peças de Beckett; há muita coisa e decidi acompanhar as performances teatrais lendo simultaneamente as peças.
Para quem quer tentar a experiência
Se você chegou até aqui, talvez esteja realmente com interesse na leitura desse clássico da literatura em inglês. Pois bem, aqui vão alguns lembretes.
1. Essa é uma atividade para quem tem um bom nível de inglês. Trata-se de ler um texto original, sem adaptações, de um clássico da literatura universal.
2. Você deve ler atentamente o texto ANTES de acompanhá-lo com as performances existentes no Youtube. Os problemas de compreensão textual devem ser resolvidos nessa fase, você deve dominar o texto. O vídeo será um treino de oralidade e expressão.
3. Você pode buscar outros grandes autores contemporâneos para treinar. No Youtube é possível encontrar interpretações completas de peças de, entre outros, Tennessee Williams, Arthur Miller e Eugene O´Neill.
Fontes utilizadas
Há muitas edições da peça de Beckett pela Farber & Farber. O texto que utilizei está inserido no volume:
Samuel Beckett - The Complete Dramatic Works, da Farber & Farber.
Os vídeos utilizados para acompanhar a leitura foram:
Beckett directs Beckett Waiting for Godot Part I – Apesar do título, Beckett jamais dirigiu uma peça televisionada. Essa produção, aliás, deixa muito a desejar. Além disso, o segundo ato está separado do primeiro e deve ser procurado algures no Youtube.
Waiting for Godot – Antiga gravação, talvez seja essa a que tenha sido detestada pelo autor. Pelo menos o segundo ato fica no mesmo vídeo.
Patrick Stewart & Ian McKellen on Broadway, Bowler Hats and Beckett – Curto trecho de entrevista de dois grandes atores, o mais impressionante é que com apenas 1 minuto de encenação ver o poder de interpretação dessa dupla e o potencial da peça.
Post scriptum
Realizei a mesma experiência com a peça Endgame, também de Samuel Beckett. Trata-se de uma obra bem diferente de Waiting for Godot, cuja complexidade é melhor percebida (ou mais facilmente) quando temos o suporte oral e visual.
No Youtube assista Endgame aqui.
QUESTÃO DA SEMANA Na semana passada perguntei:
Na sua opinião, qual a mais grandiosa música de todos os tempos?
Reconheço que essa é uma questão difícil e muito ampla. Em momentos diferentes de nossas vidas escolhemos uma ou duas. Outras ficam marcadas na memória e se tornam menores em relação a outras.
O fato é que existem algumas composições que sobrevivem ao tempo, às modas e continuam presentes na cultura como verdadeiros monumentos artísticos.
Nessa classificação ficam as sinfonias de Beethoven, mas muito particularmente a 9a. Sinfonia.
Com essa porta aberta poderíamos pensar em Bach, Händel, Mozart... uma lista imensa de grandes clássicos. Isso só para ficarmos no período anterior à segunda metade do século XIX...
A música é um universo à parte.
QUESTÃO PARA A SEMANA Semana passada o Bibliocanto tinha vários links para vídeos. Espero que tenha dado certo fazer a leitura consultando aquele material.
Isso me leva a uma questão: você aprova o formato de Bibliocanto com links para um áudios ou vídeos?
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