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Bibliocanto Volume XXVI

Li a mais recente tradução brasileira d’A epopeia de Gilgamesh. Eu tinha enorme curiosidade sobre esse texto e muitas expectativas em relação a essa tradução. Agora eu repasso aqui minhas impressões.

Não se trata de análise, interpretação ou roteiro de leitura. Meu objetivo é instigar a leitura do texto e abrir um canal para conversarmos sobre esse livro. Assim, quem nunca ouvir falar de Gilgamesh vai aprender um pouco mais. Quem conhece mas nunca leu o livro talvez queira partir para a experiência e quem já leu pode encontrar aqui algumas ideias para discutir. Opinião Inicial Sobre a Epopeia de Gilgamesh Para ser breve, e você não precisar ler tudo o que vem a seguir, eu digo que a leitura foi um pouco decepcionante. No entanto, a edição é realmente muito bem trabalhada e no final das contas a experiência foi interessante e enriquecedora. Vou explicar melhor. Trata-se de obra fragmentária Eu gosto de literatura antiga e tenho Homero como meu modelo de epopeias. Na Ilíada e na Odisseia, os heróis aparecem em meio a batalhas e aventuras instigantes e isso é algo que não ocorre com a Epopeia de Gilgamesh. Essa é uma obra fragmentária. As tabuinhas de argila em que estão registradas a narrativa e que sobreviveram ao tempo (literalmente, milhares de anos) revelam a história de maneira incompleta. Assim, no texto traduzido há muitas lacunas. O pior é que há partes importantíssimas da narrativa que não estão disponíveis. Isso é muito triste ao compararmos com os textos homéricos. Podemos ler a Ilíada e a Odisseia de cabo a rabo, sem lacunas na narrativa e com os heróis homéricos apresentados em todo seu vigor e completude. Além disso, o colorido, a dramaticidade e a ação das cenas se revelam por inteiro. Na Epopeia de Gilgamesh isso não acontece. Em momentos de maior tensão surge uma enorme lacuna, um diálogo central aparece aos pedaços, com uma palavra sobrevivente aqui e outra ali. Há poucos trechos relativamente bem preservados. O que torna a leitura desencadeada, uma pena. A leitura fragmentada é devida à própria natureza do objeto, um material muito antigo, preservado de maneira quase acidental. Nossa leitura é prejudicada, mas é totalmente compreensível. O material de apoio dessa tradução é excelente A edição sob responsabilidade de Jacyntho Lins Brandão é muito bem organizada, apresenta excelente introdução e um imprescindível conjunto de notas de fim. O texto original, em acádio, foi registrado em tabuinhas de argila com escrita cuneiforme. Essas tabuinhas permitiram que o texto chegasse até nós, apesar de serem relativamente frágeis. Muitas se quebraram, deixando lacunas quase intransponíveis, que só vão se resolvendo com novas descobertas arqueológicas. Ao conjunto já encontrado em escavações se somam alguns registros mais recentes. Dessa forma, o texto hoje estabelecido é uma versão provisória do que foi no passado e do que virá a ser no futuro. Novas descobertas arqueológicas e principalmente de tabuinhas com trechos do texto podem alterar a compreensão atual da obra. O tradutor cuidou de utilizar como base para seu trabalho a mais recente edição publicada por Andrew George, da Universidade Oxford. Essa edição tem como base um conjunto de tabuinhas relativamente mais bem preservadas que levam a assinatura de Sin-léqi-unnínni, o “Exorcista”; este teria sido o autor da compilação clássica das diferentes versões que existiam até então, ou seja, por volta de 1300 a.C. Essa versão, apesar de todos os cuidados e esforços, não consegue resolver várias lacunas; porém, registros em hitita e ainda em outras línguas que utilizaram o cuneiforme revelam, aqui e ali, pistas ou pequenas versões que poderiam fazer parte da versão do “Exorcista”. O tradutor toma o cuidado de colocar essas versões, quando possível e necessário, nas notas, o que ajuda na leitura e compreensão da narrativa. Para fazer jus a essa incrível história, essa recente tradução brasileira é dividida em “tabuinhas” ao invés de capítulos, 12 no total. Cada “tabuinha” é organizada com subtítulos relativos às cenas específicas narradas. Os versos, por sua vez, são numerados. Esses cuidados se revelam muito úteis na leitura feita com consultas às notas de fim. Essas notas são fundamentais para qualquer leitor. Por exemplo, fiz a experiência de ler a primeira tabuinha sem recorrer às notas. Foi péssimo, não dá para entender muita coisa. Deve-se destacar ainda que as notas são muito claras e objetivas, realmente esclarecendo pontos mais duvidosos do texto ou do contexto histórico e cultural. A meu ver, porém, a introdução é uma das melhores partes dessa edição. Muito bem fundamentada, nela podemos ver um estudo completo sobre a obra, além de um bom trabalho de erudição. Na introdução você terá todo o contexto de descoberta recente dos textos relativos a Gilgamesh. Terá também um painel claro e objetivo da história antiga do Oriente Médio, relacionada às culturas que tiveram no cuneiforme sua expressão escrita. É importante que o leitor se dedique a essa introdução antes da leitura da narrativa. Os subsídios ali presentes farão a leitura mais proveitosa.


Epopeia de Gilgámesh, tradução brasileira por Jacyntho Lins Brandão.


Uma tradução a ser comemorada

É preciso louvar a iniciativa de Jacyntho Lins Brandão. Ele é professor de clássicas, há tempos leciona língua e literatura grega antiga, mas não é acomodado. Ele se dedicou ao estudo de outra língua morta, o acádio, e premiou os brasileiros com essa importante tradução da Epopeia de Gilgamesh diretamente do original.

Brandão teve de superar a objetividade científica para realizar uma tradução com apelo literário. Isso tudo em relação a uma língua morta, muito distante da nossa e com uma estrutura de versificação muito diferente.

Se os versos, em certos momentos, não ganham muita força literária, isso se deve às limitações do processo de transcrição do cuneiforme para o alfabeto latino e depois à tradução. O processo é muito bem explicado na introdução.

De qualquer forma, esses são pequenos percalços em comparação com a iniciativa e a oportunidade dada a nós brasileiros de entrar em contato com um documento tão antigo.

Dito isso, temos ainda de reconhecer seu grande trabalho de estudo e apresentação, de forma clara e objetiva, da literatura antiga acádia, suméria, babilônica e hitita. Sim, todas essas culturas se cruzam no processo de construção e transmissão dessa epopeia.

O Contexto de Surgimento da Epopeia de Gilgamesh

Na introdução ficamos sabendo que se trata de uma obra muito mais antiga que seu primeiro registro escrito. A tabuinha mais antiga encontrada até hoje com trechos dessa epopeia foram escritas em acádio por volta do século XIX a.C. Antes disso, porém, o poema já existia há vários séculos em formato oral.

Não é possível rigor cronológico, mas é bem provável que a narrativa poética relativa a Gilgamesh, em sua versão mais antiga, circulava oralmente lá por volta de 2600 a.C.

Com o surgimento da escrita cuneiforme, o poema foi registrado em tabuinhas de argila, primeiramente em acádio, depois em sumério, e então em babilônico, com versões ainda em outras línguas de povos um pouco mais distantes, como o hitita. A base dos símbolos cuneiformes serviu para o registro dessas línguas e o tesouro literário acádio acabou por sobreviver com alterações, é claro, ao longo de uns três mil anos.

Jacyntho esclarece que este poema foi central para uma região que se estendia da Pérsia até o Egito. Essa região abrangia culturas diversas que se sucederam ao longo dos séculos, como acádia, elamita, hurrita, hitita, palaíta, luvita, urartiana, ugarítica e persa antiga, além de suméria e babilônica, é claro.

Assim, dentro de um ambiente multicultural e multiétnico, a Epopeia de Gilgámesh, em suas variadas versões foi elemento cultural central para todos os povos que se relacionaram com a escrita cuneiforme.

Essa escrita surgiu por volta de 3200 a.C. e desapareceu lá pelo século I a.C. Enquanto foi escrita de uso e de cultura, o universo de referências ligado a Gilgámesh perdurou. Mas então despareceu completamente, ficando por mais de 2000 mil anos esquecida.

Há cerca de 150 anos, porém, em 1872, o assiriólogo inglês George Smith leu em uma conferência o trecho da Epopéia de Gilgamesh que narrava sobre o dilúvio. Apenas a partir dessa época essa obra voltou, aos poucos, a ser relembrada e com o tempo entrou definitivamente no universo de referências literárias.

Fragmento de tabuinha com texto da Epopeia de Gilgamesh, séculos 14-13 a.C. Staatliche Museen von Berlin.

https://www.college.columbia.edu/core/content/gilgamesh-cuneiform-text


A Epopeia de Gilgamesh hoje

Nos últimos 150 anos a Epopeia de Gilgamesh ganhou seu lugar definitivo na história da literatura universal.

Não é para menos. Nessa narrativa encontramos vários trechos que revelam ter as origens de narrativas posteriores. A mais famosa é a narrativa do dilúvio, que aparece no Gênesis, que por sua vez foi escrito por volta do ano 800 a.C.

Hoje já há clareza sobre a influência das narrativas relativas a Gilgamesh na literatura grega, especialmente por meio de histórias de deuses de origem oriental. Sobre tais influências você encontrará mais informações nas notas da tradução de Brandão.

Um bom leitor de nossa época deve conhecer essa obra. A leitura da Epopeia de Gilgamesh, experiência possível em português, é algo que traz ao leitor um conhecimento de mundo maior. Afinal, essa é uma chance de entrar em contato, mesmo que fragmentariamente, com um universo da Era do Bronze de um povo do Oriente Médio.

Além disso, essa edição permite o contato com um trabalho acadêmico bem feito, sério e erudito. Algo que todos nós devem conhecer.

Há um outro aspecto relacionado à leitura dessa obra: a conquista pessoal. Poucas pessoas que você conhece lerão essa obra. Ela será tua quando você terminar. Uma posse pessoal, individual. Com a leitura atenta, com suas anotações, você será outro, será uma das poucas pessoas do mundo que terá tido contato com uma cultura antiga, com heróis imortais.

Isso não é pouco. Como já disse Ítalo Calvino: “...quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, informações, de leituras, de imaginações?”


Carta de Ashur-urbalitt, rei da Assíria para o rei do Egito, escrita cuneiforme em "tabuinha' de argila, século XIV a.C., descoberta em 1880, no Egito.

https://www.metmuseum.org/art/collection/search/544695



Serviço

Edição que li dessa obra:

SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh. Trad. do acádio: BRANDÃO, Jacyntho Lins. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.


Uma proposta

Agora que terminei de ler a Epopeia de Gilgámesh, estou pensando em ler outra obra da literatura acádia traduzida por Jacyntho Lins Brandão: Epopéia de Criação: Enuma Elis.

Se você quiser ler também diga aí, quem sabe fazemos uma leitura em conjunto?


LEMBRE-SE: conhecimento bom é conhecimento compartilhado. Se você gostou desse conteúdo mande para quem pode se interessar pelo assunto.


DISCLAIMER Essa é uma produção independente, sem patrocínio de qualquer natureza. As menções a obras são espontâneas e não constituem indicação de compra.

 
 
 

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