Bibliocanto Volume XXV
- Ribas Carneiro
- 10 de out. de 2023
- 8 min de leitura
Olá Pessoal,
Vamos direto ao assunto:
Como surgiu a linguagem?
Tenho certeza de que você já se fez essa pergunta e a complementou com ainda outra: quando isso aconteceu?
Essas questões são muito antigas e complexas, tanto que no começo do século XX foi tida como impossível de ser respondida. Na época, os primeiros linguistas modernos até determinaram que essa questão deveria ser ignorada.
Essa postura talvez se deva à necessidade da linguística se firmar como ciência. Devemos lembrar que para algo ser considerado científico é precisa provas, que seja algo repetível, observável etc. Considerando essas necessidades para se obter o estatuto de ciência, os linguistas recuaram.
Afinal, é simplesmente impossível reconstituir os primeiros sons dos antepassados hominídeos, bem como fixar uma data de surgimento das primeiras palavras. Não há provas, as palavras sumiram com o ar, não ouvimos mais aquelas vozes.
Era possível fazer apenas suposições, o que é anticientífico. Entretanto, houve alguns poucos ensaístas e filósofos que se aventuraram a analisar o problema. Recentemente, com o desenvolvimento da arqueologia e de novos métodos de pesquisa do passado remoto, o problema tem sido retomado aos poucos.
Explicações mitológicas sobre a linguagem
Desde muito cedo o problema da linguagem se pôs em relação ao homem. Quando ele entrava em contato com alguém que falava uma língua diferente logo tinha consciência de que usava uma língua.
Como precisamos explicar tudo ao nosso redor, o primeiro recurso foram as criações mitológicas. Na tradição judaico-cristã, Deus deu a Adão a capacidade de nomear as cosias, ainda no Jardim do Éden.
Mais tarde, com a Torre de Babel, os homens tentaram atingir os céus e se igualar a Deus. O Criador, então, criou as diferentes línguas entre todos os que trabalhavam na grandiosa obra. Assim, eles passaram a falar línguas diferentes e se estabeleceu a confusão.

A Torre de Babel (1593), por Peter Bruegel, o Velho (1526/30 - 1569).
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=112857
Explicações filosóficas sobre a linguagem
Aristóteles foi possivelmente o primeiro filósofo a sistematizar um pensamento mais completo em relação à linguagem. Em seu “Da Interpretação”, ele estabelece que o pensamento precede a fala e que os sons têm relação com o que a palavra representa.
De modo resumido, o filósofo percebia a linguagem como um instrumento para a expressão de nossos pensamentos.
A predominância do pensamento aristotélico nos séculos seguintes, inclusive na Idade Média e Renascimento, foi responsável pela permanência desses conceitos em relação à linguagem. Isso explica a presença de tais conceitos, por exemplo, na filologia.
A filologia e a explicação da origem da linguagem
A partir do Renascimento, a filologia passou a ganhar cada vez maior importância. Essa é uma disciplina que estuda os textos antigos e busca decifrar os registros escritos do passado, inclusive em línguas desconhecidas, como o egípcio antigo e assírio.
À medida que os textos da antiguidade clássica ressurgiam na Europa, os filólogos foram expandindo seus conceitos e passaram a buscar a língua mater, aquela original.
Seguindo uma velha tradição, eles tomaram o hebraico antigo como a língua original, a falada por Adão. O hebraico fazia parte dos estudos comparados com o grego, língua em que foi escrita originalmente boa parte do Novo Testamento, e o latim, a língua da cristandade.
O conceito de uma gramática universal foi inclusive estabelecido a partir do latim.
A linguística e a recusa de explicar a origem da linguagem
Nas últimas décadas do século XIX e ao longo de todo o século XX surgiu e se estabeleceu a linguística. Trata-se de uma abordagem sobre a linguagem que se quis mais científica.
Sempre que se fala de linguística se faz referência a Ferdinand de Saussure, um de seus criadores (mesmo que tenha sido de modo acidental). Saussure é considerado um dos grandes teóricos e formadores do Estruturalismo e com ele a linguística começou a ser alçada à categoria de ciência.
O problema da ciência é poder provar algo, comprovar pela repetição e descrever de modo criterioso o fenômeno. Isso é possível com as línguas naturais em uso hoje ou registradas em documentos antigos. No entanto, é algo que não pode ser feito em relação a línguas que deixaram de existir e não receberam registros escritos.
Os estruturalistas logo perceberam que não era possível estudar a origem da linguagem a partir de seu arcabouço teórico e por isso determinaram que a questão era simplesmente algo a ser evitado.

Ferdinand de Saussure (1857-1913), considerado o criador da linguística e um dos fundadores do Estruturalismo.
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9173509
Outras áreas de estudo abordaram a questão
Se os estruturalistas se recusaram a estudar as origens da linguagem, outros estudiosos, em campos correlatos, assumiram a missão.
Não demorou muito tempo para o surgimento da antropologia linguística e da linguística histórica. De certo modo, esses dois campos assimilaram conceitos modernos e agregaram-nos ao arcabouço da filologia.
Mais tarde, os estudos da arqueologia avançaram muito e o conhecimento relativo aos hominídeos se expandiu extraordinariamente. Hoje se tem a clareza de que espécies ancestrais tinham linguagem e que nossa espécie herdou muito do que se pode chamar de linguagem humana.
O Homo erectus foi uma espécie que utilizou linguagem
Entre todas as espécies hominídeas a Homo erectus é, sem dúvida, a campeã em sobrevivência e ativação de tecnologias e habilidades.
Não temos como saber que linguagem usaram, como eram seus sons, se estruturavam estruturas complexas ou emitiam simples silvos e gritos. Mas temos registros que demonstram que eles se comunicavam de uma forma bem mais avançada que outros animais.
Sim, os animais têm linguagem. Pássaros se comunicam com trinados e cantos, cães uivam e latem, gatos miam e ronronam, baleias cantam... os animais têm uma linguagem básica, sem a construção necessária de signos, mas com modulações e estilos que comunicam algum para outros de sua espécie.
Os hominídeos anteriores provavelmente se comunicavam num nível similar ao da comunicação entre primatas superiores, como gorilas, chimpanzés e orangotangos.
Com o Homo erectus, no entanto, podemos observar alguma organização social mais evoluída, o uso de fogo e a caça a grandes animais, além de certas obras de cunho estético. Tudo isso demonstra que havia algum nível de comunicação que permitia a organização social mais complexa e o desenvolvimento do pensamento estético abstrato.

Menino de Turkana, reconstituição artística Museu Neandertal, Nariokotome, Quênia.
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=94729481
A linguagem começou com o Homo erectus, mas como era?
Assumimos a certeza de que a espécie Homo erectus possuía linguagem. Mas como era essa linguagem?
Aqui entramos em outro campo complexo. Não existem registros da fala dessas espécies que desapareceram há centenas de milhares de anos.
Podemos observar o grau de comunicação existente em bandos de gorilas e chimpanzés e fazer comparações. O Homo erectus estaria alguns graus acima dessas espécies.
As primeiras palavras podem ter sido oriundas das primeiras interações com sons guturais. Urros, gritos depois gemidos e sussurros. Certos sons foram se repetindo e ganhando sentidos mais restritos.
É fácil imaginar que as primeiras palavras foram ordens. Verbos no imperativo, encaminhando alguém no bando a fazer algo, a evitar um perigo, acelerar o passo, subir numa árvore.
Esses verbos no imperativo podem ter tido inúmeras modulações. Podem ter sido usadas em infinitos contextos. Aos poucos ganharam seu sentido mais objetivo. Num ritual qualquer aqueles verbos se tornaram uma ordem a ser obedecida por todos. Ao passar pelo ritual e tornarem-se sagradas, as palavras foram assimiladas pelo grupo.
Mais tarde houve outras modulações de voz para respostas aos imperativos. Surgiram outros modos verbais, mais adaptados ao modo narrativo.
É de se supor também que o centro da língua fossem os nomes, ou substantivos. Nomear algo é fazê-lo existir. Apenas depois, numa estrutura menos formal vieram os pronomes, palavrinhas que tomavam o lugar das coisas, mas se adaptavam muito bem nas cada vez mais complexas estruturas sintáticas.
Não inventamos a linguagem, nós a herdamos
Mais tarde, outras espécies herdariam aquela estrutura de linguagem inicial e a desenvolveriam. Os neandertais já tinham uma linguagem bem mais evoluída, como revelam seus registros em ferramentas e até pinturas rupestres.
Nossa espécie, Homo sapiens, herdou, quando surgiu, há cerca de 300 mil anos, todo esse já então enorme arcabouço linguístico. O cérebro de nossa espécie, porém, tem uma estrutura mais dinâmica, que o torna capaz de aprendizagens de uma forma diferente dos das outras espécies.
Os neandertais, por exemplo, não faziam apropriações culturais e talvez isso tenha condenado a espécie. Nós, por outro lado, aprendemos em trocas sociais, isso permitiu a troca de aprendizagem de tecnologias.
Obviamente, quando nossa espécie surgiu, ela já foi jogada dentro de uma estrutura linguística pré-existente. Nossa espécie, porém, ao longo de centenas de milhares de anos foi construindo aos poucos sua própria forma de expressão.
A linguagem é resultado de ações sociais
A organização social dos primeiros humanos modernos refletiu as estruturas sociais dos hominídeos anteriores. Os bandos viraram pequenas sociedades. A posse de objetos de caça e a proteção às fêmeas e suas proles, fizeram surgir a estrutura de posse e as famílias.
O bando existiu antes das famílias. Mas os indivíduos tiveram de evitar o extermínio mútuo estruturando uma organização que preservava as relações entre indivíduos, macho e fêmea, e suas proles. A família era a resposta à desordem causada pelos conflitos por conta da posse à força das fêmeas e agressões às crianças.
As famílias também permitiram o crescimento do bando. Dessa forma, o bando se direcionava à formação de comunidades, que podem até ser chamadas de tribos.
Essas negociações internas em bandos maiores, com estrutura familiar em seu centro exigiam um uso mais sofisticado da linguagem. Não bastavam assobios, urros, gritos e silvos. Era preciso palavras, signos, e um tom formal para tratar de assuntos políticos internos.
A formalidade da linguagem
Quando estamos num grupo de pessoas e temos de decidir algo em conjunto, é fatal que se estabeleça alguma ordem de fala. Se todos quiserem ter a palavra ao mesmo tempo não haverá entendimento, a bagunça tomará conta de tudo.
Imaginemos então como foram as tomadas de decisões naqueles primeiros grupos. A organização da caçada de um mamute, o estabelecimento da estratégia, dos papéis na ação etc. Alguém teve de tomar a palavra, organizar a participação dos outros.
Esse foi um momento de formalidade. Era preciso escolher as palavras com precisão, dar a voz a quem de direito, respeitar uma ordem. E quem ganhava a vez de falar, tinha de usar sua participação no mesmo tom, fazendo-se também parte dessa voz de autoridade.
O formalismo estava presente, talvez, também nos momentos de narração, de lembrar dos feitos, alguém tinha de estabelecer uma ordem para falar, cantar.
Podemos falar de emergência da linguagem apenas quando o homem atingiu o nível da formalidade social permeada pelos sons da voz em formato bem estruturado nas negociações políticas e religiosas. Nossa espécie se preparava, então, para desenvolver as civilizações.
É bom lembrar que havia grupos hominídeos espalhadas por todos os cantos, muitos em relativo isolamento. Isso fez com que surgissem muitas estruturas diferentes de língua, uma variedade imensa. Essas línguas acabaram moldando e sendo moldadas no processo de construção de civilizações.
De qualquer forma, depois do estabelecimento da estrutura morfológica e sintática, o homem passou a desenvolver outras estruturas verbais. O percurso foi ditado pelas contingências; como eram necessários métodos de preservação das palavras, da memória, teve início o desenvolvimento da literatura e da ciência.
Mas isso é conversa para um outro Bibliocanto.

A Origem da Linguagem, de Eugen Rosenstock-Huessy
Trata-se de uma obra de caráter filosófico e ensaístico. Há amplo uso de metáforas e outras figuras de linguagem. O autor não usa termos mais “técnicos” para tratar do problema da linguagem, nem se apega às teorias mais em vogas em sua época, os anos 1950 e 1960. Sua base teórica está relacionada à tradição gramatical.
Isso não é um problema. A tradição descritiva e posteriormente prescritiva da gramática ainda é uma das formas mais concretas de análise das estruturas da linguagem.
Aliás, logo de saída, o autor critica as modernas teorias da linguagem. Em seguida, ele aponta para uma abordagem bastante original do problema da origem da linguagem: ao invés de analisar os sons guturais e expressões mais básicas, ele afirma que a origem da linguagem precisa ser investigada tomando a linguagem formal e elevada como o objeto de revelação. Afinal, de acordo com o autor, é a linguagem estruturada e formal que é a realização máxima da linguagem.
Para o autor, as interações informais, cotidianas, dos humanos não seriam muito diferentes das interações dos animais. E a linguagem do homem se diferencia das dos animais justamente por sua complexidade e estruturação.
Assim, para investigar a origem da linguagem cabe analisar, de acordo com o autor, a linguagem formal e estruturada.
Serviço
Parte das ideias que desenvolvi aqui devem algo a esse interessante trabalho:
ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. A origem da linguagem. Trad. Câmara, Pedro Sette et alii. Rio de Janeiro/São Paulo, 2002.
LEMBRE-SE: conhecimento bom é conhecimento compartilhado. Se você gostou desse conteúdo mande para quem pode se interessar pelo assunto.
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