Bibliocanto Volume XVI
- Ribas Carneiro
- 9 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 28 de jul. de 2023
Este Bibliocanto retoma o tema do anterior, avançando sobre a questão da criação dos mitos.
PARA REFRESCAR A MEMÓRIA
Vimos no Biblicanto Volume XV um pouco das histórias de vida de Padre Cícero e Lampião. De um lado o poder da fé e de outro o da bandidagem, os dois com reflexos na vida política do sertão nordestino.
Essas duas personalidades marcaram a história do Nordeste na passagem do século XIX para o século XX. Tiveram uma presença marcante na vida de milhares de pessoas e seus feitos eram narrados, contados e repetidos nas conversas.
Em pouco tempo, eles viraram personagens de narrativas poéticas da região, em canções e nos chamados romances de cordel. As histórias fascinantes que se contam nessa literatura de matriz oral acerca desses dois personagens parecem infinitas. São inúmeras as versões, fusões, variações e revisões sobre o mesmo arcabouço comum.
Esse fenômeno serve para esclarecer um pouco o processo de criação de lendas e mitos.

Cartaz do enredo da Imperatriz Leopoldinense para o Carnaval de 2023.
ORIGEM DA LENDA
Paul Zumthor, medievalista suíço que pesquisou in loco a literatura nordestina, identificou nas variações de narrativas típicas do Nordeste a mesma estrutura que envolve a criação das lendas de heróis medievais e mais longe ainda, das lendas mitológicas.
O ambiente de forte presença de literatura oral, com relativa importância dos “cantadores” em feiras livres que ocorrem em diferentes cidadezinhas do sertão nordestino, guarda muitas semelhanças com os ambientes de criação de narrativas orais da Idade Média e até de muito antes, nas pequenas aldeias dos períodos paleolítico e neolítico e Idade do Bronze.
Obviamente, aquela produção totalmente oral do passado remoto desapareceu por completo. Mas há registros aqui e ali que uma vez reconstituídos revelam como funcionavam as atividades de composição poética e musical. Os levantamentos históricos mostram um processo complexo, cheio de idas e vindas, mas que por razões didáticas podemos resumir da seguinte forma:
1. Há um acontecimento histórico marcante, uma guerra, batalha;
2. Iniciam-se as narrativas relativas àquele fato, para dar maior credibilidade, destaca-se um ou mais heróis;
3. Aquelas narrativas são repetidas e sofrem alterações, também as personalidades envolvidas na narração ganham novos contornos;
4. Ao final de um longo tempo, os personagens históricos já foram esquecidos, restando deles personagens independentes, envoltos em muitas narrativas que extrapolam os limites do real;
5. Repetidas milhares de vezes, presentes em composições populares e sempre renovadas em meio à tradição oral, essas narrativas se tornam lendas e são agregadas à mitologia. Seus personagens, incorporando vários elementos ao longo do tempo, tornam-se verdadeiros mitos envolvidos em ciclos heroicos que moldam a cultura de um povo.
Isso é mais ou menos o que podemos ver na presença cultural de Padre Cícero e Lampião na cultura nordestina. Apesar da forma um tanto alterada pelo avanço tecnológico, e não contar ainda com a longa história necessária para as alterações e incorporações culturais, vemos o uso desses dois personagens históricos como elemento para narrativas heroicas e algumas vezes humorísticas.
É claro que numa cultura antiga, a construção dos mitos se envolveria com a construção de um pensamento religioso e cosmológico. Um caso bastante estudado é o das composições de Homero. Vamos dar uma olhada.

Ruínas atribuídas aos muros da antiga cidade de Tróia, próximo de onde hoje fica Hirsalik, na Turquia.
ORIGENS DA ILÍADA
Ninguém sabe exatamente a origem da Ilíada, nem mesmo sabe-se se Homero, o autor atribuído ao poema, realmente existiu. Na verdade, há algo de mítico nas origens dessa obra e seu autor.
O que se sabe é que desde muito tempo a mitologia grega circulava de forma oral entre diferentes grupos helênicos, ou gregos, criando um arcabouço cultural comum.
Dentro da mitologia havia, ao lado das histórias de deuses, os ciclos de narrativas, conjuntos de histórias criadas ao redor de um personagem ou um acontecimento. Havia, por exemplo, o ciclo de Héracles, ou Hércules, em que surgiam as façanhas e aventuras desse herói. Havia ainda os ciclos de Teseu, o Ciclo dos Argonautas, o Ciclo Tebano, que continha a história de Édipo, entre outros ciclos. A Ilíada é uma narrativa do Ciclo Troiano.
Esses ciclos têm origem indeterminada, apenas o Ciclo Troiano, de acordo com pesquisas arqueológicas, parece remeter a uma grande guerra ocorrida na região da atual Turquia por volta do século X ou XI a.C. Durante cerca de 300 ou 400 anos essas narrativas sobreviveram em formato oral. Com o tempo, elas foram se alterando e misturaram deuses e heróis.
Sem suporte físico, como a escrita no papel, para sua memorização e fixação utilizava-se a estrutura poética. A performance dos poemas era acompanhada de algum instrumento musical, principalmente a harpa, e ocorria em palácios, praças públicas e festivais.
Quem normalmente fazia essa performance poética eram os aedos, poetas itinerantes que viviam de sua arte, recebendo pequenas contribuições nas ruas ou sendo contratados para alegrar as festas.
A tradição diz que Homero era o maior dos aedos. Um poeta cego, cuja genialidade não podia jamais ser ultrapassada. De fato, nenhum autor grego tentou, de forma séria, ombrear as epopeias homéricas.
A Ilíada, a mais antiga das narrativas homéricas, teria surgido entre o século IX a.C. e VI a.C. Quer dizer, ao longo de três séculos ela foi sendo refinada, burilada, alterada, modificada e enriquecida, e essa versão, lá pelo século VI a.C., ganhou formato escrito. De fato, por essa época houve a emergência da escrita helênica e o estabelecimento da mitologia grega, que desde então ficou sem novas adições relevantes ou rupturas.
O século VI a.C. foi cheio de grandes mudanças culturais e sociais, inclusive invasões da região helênica por outros povos. Em meio àquela confusão alguns poemas que circulavam de forma oral foram registrados em formato escrito. Do Ciclo Troiano foram registrados dois poemas, a Ilíada e a Odisseia. Outras narrativas desapareceram ou sobreviveram apenas contadas em segunda ou terceira mão, e é dessa forma que sabemos do restante da história desse Ciclo e do restante da mitologia grega.

Corpo de Heitor sendo levado para Tróia – alto relevo de sarcófago romano (c. 180-200 d.C.) E A MITOLOGIA? Com a mitologia o processo é parecido. Aqui, porém, há a busca pela explicação do universo. Baseado em princípios de observação dos elementos da natureza, os astros, as estações, as plantas, animais etc. o homem primitivo criou suas cosmogonias, ou seja, suas explicações sobre a origem do universo. Pelo que se sabe, os povos do período neolítico eram praticamente todos animistas e, portanto, politeístas. Assim, diferentes divindades se encarregariam de um aspecto da vida, da natureza ou do universo. Nessa estrutura, cada deus assumia uma personalidade relacionada à sua vocação. É claro que isso resultava em narrativas de criação daquela personalidade e de suas peripécias. Ao longo de séculos de repetições, adaptações, esquecimentos e acréscimos, essas narrativas acabaram por se estabilizar de uma ou outra forma. Muitas vezes as sociedades ganhavam alguma organização social mais burocrática baseada na estrutura religiosa, como é o caso da civilização egípcia antiga, o que demandava uma fixação da estrutura narrativa. A mitologia grega se estabilizou na Idade do Bronze, quando se consolidaram as narrativas homéricas e a escrita. Uma consequência relevante nesse processo é o surgimento, pouco tempo depois, da Odisseia, de Homero, e em seguida da Teogonia, de Hesíodo. Esta é a obra que pela primeira vez sistematiza uma apresentação completa da mitologia grega. A mitologia, na Grécia, na Roma antiga, no Egito Antigo, na Assíria, enfim, em todos os locais em que emergem civilizações, é um dos elementos iniciais de organização social sedimentando a cultura regional. Tudo isso, como vimos, a partir de recriações literárias orais de origem muito remota. LEMBRE-SE: conhecimento bom é conhecimento compartilhado. Se você gostou desse conteúdo mande para quem pode se interessar pelo assunto.
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