Bibliocanto Volume XV
- Ribas Carneiro
- 9 de jul. de 2023
- 8 min de leitura
Como nascem os mitos?
Padre Cícero e Lampião são duas personalidades históricas que se tornaram centrais para a cultura nordestina. Eles constituem, hoje em dia, um arcabouço narrativo dos mais ricos dentro da cultura nacional. Eles são a origem de um verdadeiro ciclo de narrativas lendárias.

Estátua de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, Ceará.
In: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2671685
PERSONAGENS HISTÓRICOS QUE SE TORNAM ELEMENTOS DA CULTURA POPULAR
Padre Cícero e Lampião são os personagens históricos mais presentes nas representações culturais e artísticas brasileiras. Eles claramente ajudaram a sedimentar a cultura nordestina a partir do século XX.
A figura de Padre Cícero se relaciona, primordialmente, com a fé dos mais de 2 milhões de romeiros que se dirigem todos os anos a Juazeiro do Norte, no Ceará. Historicamente, no entanto, ele se envolveu em polêmicos milagres eucarísticos, em brigas com o Santo Ofício, na vida política, em negociações com jagunços e até mesmo em revoluções armadas.
Já a figura de Lampião se relaciona com o cangaço, com os fora-da-lei. Mas a romantização de sua figura o tornou um símbolo de resistência, de reação contra os poderosos e até como um bem-feitor mal compreendido. Algo, é claro, que não encontra respaldo na vida violenta que ele levou, nem nas muitas maldades que espalhou pelo sertão nordestino.
Esses dois são personagens que marcaram uma época, deixaram um legado para a história e acabaram entrando para o universo da cultura popular. Eles são fonte aparentemente infindável de história contadas em poemas de cordel, em músicas, em contos, romances, biografias, filmes e telenovelas.
Ecos dessas personalidades podem ser encontrados nas obras de alguns dos grandes nomes da literatura brasileira, como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dias Gomes, Ariano Suassuna e vários outros escritores.
Até hoje esses dois personagens ou ecos de suas figuras reaparecem em produções televisivas e cinematográficas. Mesmo quem vive muito longe do sertão nordestino reconhece neles elementos relevantes da cultura nacional.

Padre Cícero com cerca de 80 anos.
PADRE CÍCERO
Nascido no Crato, Ceará, em 1844, Cícero Romão Batista desde muito jovem revelou vocação religiosa, quando acompanhava com interesse as atividades do padre Ibiapina em sua região.
Esse padre pregava a pé por todo o sertão nordestino, erguendo capelas, escolas, construindo açudes e hospitais para os pobres em regime de mutirão. Ele instituiu as chamadas casas de caridade, locais em que meninas órfãs podiam viver, sendo educadas e desenvolvendo ofícios manuais.
Ibiapina fundou ainda uma nova ordem religiosa, a dos beatos e beatas, que se multiplicaram no Nordeste, à margem da Igreja oficial. Eles envergavam vestimenta característica, pediam esmolas para os necessitados, pregavam o evangelho e celebravam terços e novenas.
Esses beatos e padres caminhantes não eram coisa nova no sertão, mas por volta do século XIX sua importância cresceu muito. É desse ambiente de religiosidade popular que viria a surgir, por exemplo, Antônio Conselheiro, líder religioso envolvido na Guerra de Canudos.
O jovem Cícero sofreu influência desse ambiente e mesmo sua formação no rígido Seminário da Prainha, em Fortaleza, não foi suficiente para apagar tais influências em seu espírito.
Um ano após ser ordenado padre, em 1871, aos 27 anos de idade, Cícero se fixou na região do Cariri, em Juazeiro, um vilarejo com cerca de 400 habitantes. Ele conseguiu impor ordem naquele lugar. Com seu cajado fazia tremer os pecadores renitentes, mas também se mostrava manso e solícito com os fiéis, sendo um grande conselheiro.
Inspirado por Ibiapina, ele organizou mutirões para realizar, entre outras coisas, a construção da Capela de Nossa Senhora das Dores. Desenvolveu ainda importante atividade humanitária entre os anos de 1877 e 1879, quando ajudou como pode a população da região e mais milhares de retirantes a sobreviver à pior seca já registrada no Nordeste.
A partir de 1889, o Padre Cícero se viu no meio de uma imensa polêmica relacionada a supostos milagres eucarísticos. As hóstias servidas a uma beata, Maria de Araújo, tornavam-se sangue sempre que tocavam sua língua. A notícia se espalhou pelos quatro cantos do sertão nordestino e a partir de então iniciou-se o fluxo de romeiros até Juazeiro.
Esses milagres foram investigados pela Igreja Católica. A polêmica cresceu à medida que o bispo do Ceará mostrava grande resistência em reconhecê-los e sempre que podia recriminava as atitudes de Padre Cícero.
Entre 1889 e 1891, os paninhos utilizados para limpar o “sangue milagroso” se tornaram, eles próprios, objetos de adoração daquela população sertaneja. A situação parecia fora do controle da Igreja, mas depois de dois inquéritos o Padre Cícero e a beata foram proibidos de persistirem naquelas demonstrações.
Além das censuras, eles teriam de entregar os panos sujos de sangue e coibir o fluxo de romeiros. Nos anos seguintes haveria muitas reviravoltas no caso, com Cícero perdendo a autorização para rezar missas.
O padre, porém, resistia sempre de maneira criativa. Ele continuava a falar a seus fiéis a partir da janela de sua casa. Impedido de oficiar missas, ele acabava sendo chamado para ser padrinho das crianças da região e o fez tantas vezes que se tornou comum as pessoas o reconhecerem como padrinho, origem do termo caboclo “padim ciço”.
Em 1898, ele foi a Roma para responder ao Santo Ofício. Levava consigo grandes doações em dinheiro e uma longa preparação para sua defesa, mas isso de nada adiantaria, alguns anos mais tarde ele seria excomungado.
Afastado de suas atividades religiosas, o Padre Cícero se envolveria na política. Inicialmente, lutou pela emancipação de Juazeiro em relação ao município do Crato. Desde que os romeiros começaram a visitar Juazeiro, a cidade tinha crescido absurdamente e não era mais um simples vilarejo. Dessa forma, havia a intenção de ver a cidade mais autônoma.
Naquela época, os processos de emancipação no Nordeste não eram resolvidos no âmbito legislativo ou judiciário. Muitos desses casos viraram verdadeiras guerras campais e não foi diferente com o Juazeiro. Padre Cícero juntou-se a um grupo político e seus jagunços e permitiu que parte dos romeiros se armasse em defesa da emancipação política da cidade. Como resultado, houve a emancipação e o próprio Padre Cícero se tornou prefeito da cidade, cargo que exerceria por mais de 20 anos.
Essa não seria a última vez em que jagunços e fiéis de Padre Cícero se envolveriam numa revolta armada. Entre 1913 e 1914, uma disputa pelo governo do estado evoluiu para uma pequena guerra civil no Ceará. Esse tipo de disputa era comum no Nordeste, com os coronéis mantendo exércitos particulares ou contratando jagunços para manterem o poder.
O Padre Cícero compreendia perfeitamente esse jogo e se manteve politicamente influente por décadas. Naquele ambiente, ele emergia como uma figura superior, respeitada por todos, inclusive cangaceiros e jagunços. Foi assim que o Padre foi chamado para negociar a participação de Lampião e seu bando numa luta contra os guerrilheiros da Coluna Prestes em 1929.
O Padre Cícero viveu incríveis 90 anos, sempre na região do Cariri, no Ceará. Transpôs os limites da história e se tornou uma referência cultural. Seu nome se relaciona com a vida do sertão nordestino, com os sertanejos, os jagunços, os volantes, a seca, os romeiros, os coronéis, a superstição e a fé.

Lampião em Juazeiro, foto tirada em 1929.
LAMPIÃO
Virgulino Ferreira da Silva nasceu em 1898, em Pernambuco. Sua origem era humilde, provavelmente trabalhou como vaqueiro na região antes de se tornar cangaceiro.
O cangaço era uma atividade que prometia dinheiro, aventura e uma vida livre das convenções sociais da época. Isso deve ter sido um grande chamariz ao jovem Virgulino. Aos poucos ele se tornou famoso por suas estratégias, manobras ousadas e pela violência.
Foi a partir de 1925 que Lampião se tornou líder de seu próprio grupo. Isso ocorreu depois que um dos maiores cangaceiros da época, Sinhô Pereira, conheceu o Padre Cícero e se converteu. Ele deixou de beber, de fumar e nunca mais segurou uma arma. Foi para Goiás e depois se estabeleceu em Minas Gerais. Em seu lugar, com apenas 24 anos começaria a fama de um dos maiores e mais violentos foras-da-lei de todos os tempos.
Os jornais da época em todo o Brasil traziam as notícias dos crimes, ataques a cidades inteiras e maldades causadas pelo bando de Lampião. Grupos de policiais, chamados “volantes” tentavam emboscá-los, mas a extraordinária capacidade de manobra do grupo sempre os deixava ilesos.
Lampião atuava também como mercenário, quando contratado por algum fazendeiro. Era uma figura importante na estrutura política da época e chegou a ter a promessa de uma patente de capitão do Exército.
A vida de banditismo de Lampião e seu bando acabaria apenas em 1938, quando uma “volante” conseguiu emboscá-lo. Todos os mortos foram decapitados e suas cabeças foram exibidas publicamente.
O ENCONTRO ENTRE PADRE CÍCERO E LAMPIÃO
Em 1929, um político muito ligado ao Padre Cícero, Floro Bartolomeu, buscava aumentar seu prestígio junto às esferas do Governo Federal. Para tanto, ele organizou um “Batalhão Patriótico” para lutar contra a Coluna Prestes.
Esse era um grupo comunista que há algum tempo cruzava o país de norte a sul em incríveis ações guerrilheiras. Como o Exército não conseguia vencer a Coluna, Floro sugeriu que, assim que entrassem no território do Ceará, seu “Batalhão Patriótico” a enfrentaria.
No entanto, à medida que a Coluna avançava, ficou claro que o Batalhão não teria nenhuma chance na luta. Assim, Floro Bartolomeu entrou em contato com Lampião e prometeu-lhe uma elevada soma em dinheiro, anistia de seus crimes e a patente de Capitão do Exército. Para selar tal acordo, o cangaceiro se dirigiu a Juazeiro.
No dia 4 de março de 1929, Lampião e 49 comparsas entraram na cidade. O delegado foi ordenado pelo Padre Cícero a não preparar uma “volante”, pois Lampião vinha como convidado de Floro Bartolomeu. Às 10 horas da noite, as duas lendas vivas do Nordeste se encontraram.
A literatura oral e de cordel é riquíssima em fatos inusitados que teriam ocorrido nessa ocasião. As mais singelas sugerem que Lampião teria se ajoelhado e arrependido de seus pecados perante o padre. No entanto, daquilo que as poucas testemunhas do encontro puderam contar, houve apenas o pedido do padre para que Lampião deixasse a vida de bandido.
Mais provável ainda é que o padre tenha exposto ao cangaceiro sobre o quanto sua presença era inoportuna naquele momento, pois a Coluna Preste havia manobrado de maneira extraordinária e deixado as duas frentes dos “Batalhão Patriótico” sem capacidade de reação. Essas tropas agora estavam por ali, sendo bem capazes de fazerem frente ao grupo de Lampião.
O mais famoso de todos os cangaceiros, porém, não queria sair dali de mãos vazias. Ele queria tudo o que lhe fora prometido. Mas isso era impossível. O dinheiro estava retido por razões burocráticas no Rio de Janeiro. Restava a patente de capitão, mas quem a daria?
Padre Cícero chamou o único funcionário federal presente em Juazeiro, o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa, que assinou um documento redigido a máquina de escrever em que se dava a Virgulino Ferreira da Silva a patente de capitão. Mais tarde, Lampião descobriria que aquele papelzinho não lhe garantia nada e que continuava a ser perseguido pelas “volantes”.
Lampião e seu bando ficaram três dias em Juazeiro. Lá ele tinha duas irmãs que viviam em paz, sob a proteção de padre Cícero, a polícia jamais as incomodou. Muita festa foi feita nesses dias, várias fotos do bando foram tiradas e a cidade foi deixada em paz, sem saques ou qualquer outro tipo de violência. Lampião pode exercer sua vaidade de forma plena, com a imprensa dando-lhe enorme cobertura na cidade que era o maior polo religioso do país.
ORIGEM DA LENDA
As histórias fascinantes que se contam na literatura oral e de cordel no Nordeste acerca desses dois personagens parecem infinitas. São inúmeras as versões, fusões, variações e revisões sobre o mesmo arcabouço comum.
Um medievalista suíço, que pesquisou, in loco, a literatura nordestina, Paul Zumthor, identificou nessas variações de narrativas a mesma estrutura que permitiu a criação das lendas de heróis medievais e mais longe ainda, das lendas mitológicas.
Um acontecimento ou um afamado herói de uma batalha ou de um feito notório, tem sua história contada e repetida e acrescentada de elementos e combinada com as de outros heróis. Assim, ao final de um longo período, quando os personagens factuais já foram esquecidos, restam histórias complexas, verdadeiros ciclos heroicos que moldam a cultura de um povo.
Assim, nas produções literárias e fílmicas acerca de Padre Cícero e Lampião podemos testemunhar alguns dos primeiros estágios da construção dos mitos.

SERVIÇO: sobre Padre Cícero e Lampião, é claro, existe muita coisa. Sugiro aqui uma das melhores biografias que li recentemente:
NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Entre os anos de 1936 e 1937, o cineasta Benjamin Abrahão obteve autorização para filmar Lampião e seu bando. Assista a versão restaurada do filme original.
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