Bibliocanto Volume VI
- Ribas Carneiro
- 24 de abr. de 2023
- 10 min de leitura
Olá pessoal!
Este Bibliocanto sai num 21 de Abril, Dia de Tiradentes. Esse feriado faz com que se esqueça de outra data importante, o 22 de Abril, que não é feriado, mas é a data oficial do Descobrimento do Brasil.
E como se sabe dessa data?
Os detalhes desse evento extraordinário são conhecidos graças sobretudo a um dos textos mais incríveis da língua portuguesa: A Carta de Pero Vaz de Caminha.
Neste Volume o foco principal é a Carta, mas ele também trata de uma das pontuações mais sutis, elegantes e temidas de todas: o ponto-e-vírgula.
Agora, com você o Bibliocanto especial do Descobrimento.

Página da Carta de Pero Vaz de Caminha, Vera Cruz, 1o. de maio de 1500.
A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
Pero Vaz de Caminha era o escrivão indicado para a feitoria que seria criada em Calicute, na Índia, pelos portugueses. Infelizmente, ele pereceria na viagem, mas ficou para a história graças a seu extraordinário talento para a escrita.
A carta é datada de Vera Cruz, 1º. de maio. Vera Cruz é a denominação dada por Pedro Álvares Cabral à terras onde aportaram e a data é da expedição das cartas da frota por meio da caravela de mantimentos, que voltaria para Portugal com a notícia do "achamento".
Esse documento é um testemunho privilegiado de fato histórico que mudou as concepções existentes até então, dos dois lados no Atlântico. O texto é um relato pormenorizado do encontro dos portugueses com os índios.
Fica claro, logo de início, que o foco de Caminha é o encontro com os nativos. O que se segue então é uma narração deslumbrante de como os marinheiros os encontraram na praia, como tentaram se comunicar com eles e como acabaram festejando junto deles.
A visão do autor é de completa simpatia, inclusive com um certo maravilhamento, em relação ao povo que via. Suas observações se tornaram antológicas:
“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.”
Os portugueses convidaram dois “homens da terra” para a nau do capitão. Aquilo era o encontro “oficial” de dois mundos e Caminha é sua testemunha. Mais importante ainda, ele proporciona uma narrativa em tudo encantadora, tanto pela linguagem quanto pelo desenrolar dos acontecimentos.
“[Os dois índios] Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs o olho no colar do Capitão, e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para o castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se também houvesse prata.”
A comunicação gestual era compreendida do jeito que os portugueses queriam. O próprio Caminha reconhece, pouco depois de um dos nativos ter tomado um colar português nas mãos, que a interpretação dos gestos e ações dos índios por parte dos portugueses era falha:
“Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.”
Os portugueses ficam por aquelas praias cerca de dez dias. O espírito de cordialidade, harmonia e concordância entre índios e europeus perdura por todo o tempo.
Os portugueses mostram-se amistosos com os índios, trocam presentes e chegam a se misturar em convivência alegre. Nessa atmosfera, numa reunião entre os capitães, Cabral questiona se deveriam tomar por força dois daqueles “homens para os mandar a Vossa Alteza”. Em assembleia, decidiram que não era necessário e que de muito mais valia seria deixar lá dois degredados.
Durante os dias em que permanecem por ali, há uma sucessão de saídas para a praia, encontros com os nativos, trocas de presentes e curiosidade geral. Apesar de não se entenderem pela linguagem, europeus e indígenas interagem animadamente:
“Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que lhes se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.”
O retrato é vívido. A ação da festança improvisada e da alegria que repentinamente é quebrada por algo que fazia os indígenas fugirem sem explicação. A “esquiveza” é um traço curioso que Caminha compara ao comportamento dos pequenos animais que se põem a brincar, mas repentinamente fogem. Caminha esteve atento a este fato e rememora aqueles dois que visitaram a nau capitânia:
“Os outros dois, que o capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.”
Dessa forma, Caminha revela uma percepção de que aquele lugar e aquela gente pertencem a algo como um "paraíso na Terra". Masi adiante ele reforça a descrição das qualidades da região "uma terra em que se plantando tudo dá".
Com o passar dos dias a relação se intensifica, Caminha conta tudo em detalhes. Os retratos e as narrativas fazem transparecer a todo momento a curiosidade e interesse do autor pelos indígenas. Não há, em Caminha, a mínima intenção de ridicularizar ou um sentimento de superioridade em relação aos índios.
Quando da missa rezada junto dos índios, Caminha nota que eles imitavam os europeus ao ajoelhar e levantar. Como ele não havia encontrado nenhum sinal de idolatria entre aquele povo, logo julga que a melhor obra d’El Rei seria salvar as almas daquela gente.
Deve-se ressaltar que a preocupação evangelizadora em Caminha não tem qualquer sentido de exploração ou dominação. Ela é fruto da percepção da humanidade naquele povo e do desejo de querer seu bem. Enquanto cristão, na escala de valores de Caminha, a salvação e a glorificação das pessoas são alcançadas com a conversão a Deus.
Caminha faz uma carta que aponta para uma possível convivência respeitosa entre povos diferentes. Infelizmente a história tomaria outro rumo, mas pode-se identificar em Caminha a mesma preocupação humanista que tiveram outros europeus, como Cabeza de Vaca e, mais tarde, São José de Anchieta e Padre Vieira.

Desembarque de Cabral – Oscar Pereira da Silva (1865-1939) - Pintura de 1904 a partir de um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha.
A HISTÓRIA DA CARTA Enviada para Portugal pela nau dos mantimentos, junto de várias outras, a Carta de Pero Vaz de Caminha sobreviveria ao autor e às agruras do tempo (inclusive ao Terremoto de Lisboa, de 1755). Ela permaneceu, porém, desaparecida por séculos, sendo descoberta apenas em 1773, nos arquivos da Torre do Tombo, por José de Seabra da Silva. A carta original é constituída de sete folhas de papel divididas em quatro, num total de vinte e sete páginas de texto e uma de endereço. O documento está preservado e pode ser visto no site da Torre do Tombo. A primeira edição pública da carta viria a lume apenas em 1817, sob a coordenação do Padre Manuel Aires de Casal. Trata-se de edição censurada, em que a descrição da nudez das índias é suprimida. Hoje existem muitas versões. Grandes estudiosos, como Jaime Cortesão, Antônio Baião e Carolina Michaëlis de Vasconcelos se debruçaram sobre esse documento e produziram edições fac-símiles, transcrições e até edições atualizadas. Estas são muito importantes, pois a linguagem quinhentista original é muito distante da atual. A Carta de Pero Vaz de Caminha é um dos mais originais e belos textos da história literária em língua portuguesa. Além disso, é um texto curto, que se lê rapidamente. Experimente a versão atualizada da Biblioteca Nacional. Infelizmente ela não tem notas de rodapé, algo importante nesse tipo de texto. Mas nas bibliotecas do país é muito fácil encontrar essa Carta, há inclusive uma adaptação de Rubem Braga, muito elogiada, que não é difícil de se encontrar.
HISTÓRIA O 22 de Abril de 1500 é tido como o dia do “Descobrimento do Brasil”. Porém, hoje, é ponto pacífico que a viagem comandada por Pedro Álvares Cabral não foi a primeira a aportar no território que viria a ser o Brasil. Evidências históricas demonstram que o território foi visitado antes pelos espanhóis em duas expedições, a de Vicente Pinzón e a de Diego de Lepe, e talvez por portugueses. Além disso, deve-se considerar que o Tratado de Tordesilhas foi assinado em 1494 e o governo português não assinaria um acordo desses sem ter informações confiáveis. Tendo isso em mente, parece claro que a viagem de Cabral tinha o objetivo de tornar pública a posse daquelas terras. É importante lembrar que Vasco da Gama já tinha encontrado o caminho para as Índias e Pedro Álvares Cabral tinha a missão de lá construir uma feitoria. No entanto, o capitão se dirige ao oeste, fora da rota recém-descoberta, e aporta onde hoje é o sul da Bahia. Os registros demonstram que não houve tempestade, nem perda de rumo, ele seguiu seguro por uma rota que o levava para oeste. Uma vez tendo aportado naquelas terras, foram produzidas inúmeras correspondências para o Rei D. Manuel I, pelos capitães, emissários e cronistas, além de várias cartas dos marinheiros para seus familiares. Uma das naus da frota retornou daquele ponto a Portugal, levando essas correspondências. De todas elas restaram apenas duas, a de Pero Vaz de Caminha e a de Mestre João Faras, médico real a bordo da nau capitânia. Um terceiro documento foi produzido, a Relação do Piloto Anônimo, que só chegou à Europa quando terminou a expedição da viagem à Índia. Desses três documentos que registram o Descobrimento, a Carta de Pero Vaz de Caminha tem tais qualidades estéticas que se pode dizer seguramente que se trata de uma pequena joia literária. Assim, não é exagero dizer que o Brasil pode ser considerado o único país do mundo que tem como “certidão de nascimento” um texto literário.

Primeira missa no Brasil (1860) - Victor Meireles (1832-1903)
UM NOVO CAMPO DE ESTUDOS E REFERÊNCIAS
A descoberta da Carta de Pero Vaz de Caminha e suas reedições no século XIX fomentaram a abertura de um novo campo de estudos e referências em relação ao Descobrimento e aos primeiros anos da colonização portuguesa.
Nas artes surge toda uma iconografia ligada ao primeiro encontro com os índios, ao desembarque de Cabral e à primeira missa no Brasil.
No âmbito dos estudos, é a partir dos documentos históricos deixados pelos cronistas, religiosos e exploradores portugueses que podemos conhecer mais sobre a vida dos índios, a natureza das Américas e saber mais sobre a própria visão que os europeus tinham de si e do mundo.
Ness sentido, é também interessante conhecer a Carta de Mestre João Faras e A relação do piloto anônimo (há uma edição muito interessante em PDF, gratuita, aqui)
Para se inteirar mais, Viagem do Descobrimento, de Eduardo Bueno, é um ótimo texto introdutório.
Entre os estudos mais avançados é preciso conhecer o de Capistrano de Abreu, O descobrimento do Brasil, aqui em PDF.
Há várias interpretações e análises sobre as concepções de mundo do homem europeu que se via surpreendido pela América e seus habitantes, mas uma das mais interessantes para começar é a Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda.

PONTO-E-VÍRGULA O ponto-e-vírgula é de longe a mais controversa, confusa e temida das pontuações. Mas é também uma sutil e poderosa ferramenta que ajuda na escrita de diversas maneiras. O ponto-e-vírgula tem duas funções: 1. Listar; 2. Conectar orações completas. Listas horizontais Você já teve problemas quando estava escrevendo uma lista, separando cada item com uma vírgula, mas de repente descobre que os itens contêm, eles mesmos vírgulas? Isso vira uma bagunça! Nesses casos, use o ponto-e-vírgula, que desempenhará um importante papel ao lado das vírgulas. Por exemplo: Alguns dos mais famosos poemas épicos são: Ilíada e Odisseia, ambas de Homero; A divina comédia, de Dante Alighieri; e Os lusíadas, do grande poeta português Camões. Listas verticais Também usam ponto-e-vírgula. Exemplo: Os documentos básicos sobre o Descobrimento são: a-) Carta de Pero Vaz de Caminha; b-) Relato do Piloto Anônimo; c-) Carta de Mestre João Faras. Além das listas, é muito comum o uso de ponto-e-vírgula na linguagem jurídica. Em contratos ou na redação de leis, o ponto-e-vírgula tem uma função central na construção das cláusulas estruturadas em sentenças complexas, com vírgula. Vejamos a redação de um artigo da Constituição Federal: "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." Aqui é possível observar cláusulas formadas com uso de vírgulas e separadas entre si por ponto-e-vírgula. Conectando orações É aqui que o ponto-e-vírgula realmente brilha! O ponto-e-vírgula contém ao mesmo tempo uma vírgula e um ponto, sendo uma mistura de ambos. Porém, seu sentido semântico é de ponto-final, mas um ponto final enfraquecido, que não rompe totalmente a relação entre sentenças. Assim, o ponto-e-vírgula é usado para conectar duas orações independentes, que têm sentido completo em si mesmas e seriam sentenças autônomas, mas permanecem integradas numa sentença complexa. Por exemplo: a-) A gramática era central nos estudos medievais. Uma matéria que fazia parte da construção do pensamento religioso. b-) A gramática era central nos estudos medievais, como uma matéria que fazia parte da construção do pensamento religioso. c-) A gramática era central nos estudos medievais; uma matéria que fazia parte da construção do pensamento religioso. Note nos exemplos que enquanto o ponto torna as duas orações muito separadas, inclusive deixando a segunda sentença um tanto desajeitada, a vírgula exige o uso de uma conjunção. Já o ponto-e-vírgula permite associar as duas sentenças de maneira mais próxima do que se fossem separadas por um ponto. Da mesma forma, em relação à vírgula, o ponto-e-vírgula torna a sentença mais sucinta, eliminando a conjunção. Além disso, o ponto-e-vírgula adiciona maior variedade para a estrutura das sentenças e parágrafos. Duas orações combinadas entre si por um ponto-e-vírgula formam uma sentença única; isso, por seu turno, dá mais relevância tanto para o ponto quanto para a vírgula em suas funções de separar ou unir orações. O ponto-e-vírgula dá uma textura diferente para a escrita, tanto em relação ao estilo quanto ao sentido. Ele é, assim, uma das mais belas e sutis ferramentas que existem no arsenal da escrita.
QUESTÃO DA SEMANA No Bibliocanto passado perguntei se vocês preferiam referências de fontes no formato ABNT ou basta incorporar títulos e autores no texto. Não houve manifestação, mas decidi, autocraticamente, incorporar aos textos as referências e quando possível colocar links. Neste Bibliocanto há vários links de textos interessantes, dê uma olhada. QUESTÃO PARA A SEMANA Esta semana não vou colocar uma questão em especial, mas vou perguntar se há alguma pauta que você gostaria de ver abordada num Bibliocanto. Dê lá sua sugestão, quem sabe eu consiga atender ao pedido?
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